Negros fizeram a abolição

Negros fizeram a abolição

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Em "Raízes do conservadorismo brasileiro, a abolição na imprensa e no imaginário social" (Civilização Brasileira), livro que pensei inicialmente intitular "1888, o ano esquecido pela história oficial e branca", trato do papel determinante dos próprios negros no processo que levou ao fim no Brasil da mais infame das instituições criadas pela humanidade. A abolição começou com Zumbi dos Palmares e se completou com três negros: Luís Gama, André Rebouças e José do Patrocínio. 20 de novembro e 13 de maio se complementam. Um capítulo.

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A abolição foi um longo processo de conflito vivido nas ruas, nos campos, nas lavouras, nas igrejas e inclusive  nos teatros. Essa lenta construção ganhou impulso a partir de 1871. O tempo apaga os rastros da história no imaginário social. O maior erro que se comete é imaginar a abolição como uma concessão imperial ou, no máximo, como um ato generoso da Coroa sob a pressão do parlamento. Outro engano, como se viu, é imaginar a abolição sem a luta dos próprios escravos. A reação dos cativos sempre enfrentou a brutal engrenagem repressora azeitada pelos proprietários com base na tríade violência privada, polícia e justiça. O Brasil, ao contrário do que se costuma dizer, teve um dos sistemas repressores mais violentos e eficazes do mundo.

Enfrentar o aparato repressivo dos escravistas brasileiros significava pagar com a vida, por execução sumária ou por condenação à morte, ou ser submetido legalmente a castigos horrendos. O senhor de escravos detinha o poder de punir os seus cativos. A justiça era acionada quando a ação de um escravo envolvia interesses de terceiros. A história, escrita pelos escravistas, pintou um quadro de interação entre cativos e proprietários que faz jus às ficções mais românticas e falsas de um José de Alencar. Todo o sistema funcionava no sentido de cercar, caçar e neutralizar os fugitivos e os rebeldes.

A astúcia do escravismo brasileiro foi simular uma malemolência de relações que não existiu ou só existiu circunstancialmente. Difundiu-se a ideia de que senhores e escravos, à sombra das mangueiras, em dias langorosos, uns embalando os outros nas redes das sestas regeneradoras, fundiam-se superando abismos raciais e o fato de serem proprietário e propriedade. Em certos momentos de distensão, isso até ocorreu. Nada, porém, jamais apagou a separação estrutural entre o sujeito e o submetido. Mesmo quando o dono engravidava suas propriedades, prevalecia a relação de dominação que os ligava e separava cruelmente. Se a escrava chegava a apaixonar-se pelo senhor, ou este por sua cativa, o efeito estrutural não se apagava. Também não se pode ignorar os jogos de sedução e de esperança de emancipação ou de melhor tratamento na complexa rede de envolvimentos possíveis.

A consciência de horror finalmente ganhou as ruas. Os abolicionistas conceberam múltiplas formas de enfrentamento com os escravistas. Como se viu, entre os principais ativistas da abolição estiveram homens como José do Patrocínio, André Rebouças e Luiz Gama. Se Gama morreu cedo, os outros dois levaram a luta ao seu triunfo. Em certo momento, a tomada do espaço público tornou-se determinante e corriqueira. A abolição teve suas manifestações de rua, seus comícios, suas bandeiras, seus confrontos com a polícia, suas estratégias de divulgação, seu “marketing”, seus slogans e suas formas de produção de notícias, de acontecimentos e de manchetes.

Os teatros, no século XIX, eram os espaços nobres da cena pública. Neles, os abolicionistas ou emancipacionistas encenaram, com realismo de folhetim, as suas melhores ações contra a ideologia escravista. Uma das estratégias mais bem-sucedidas e impactantes usadas pelos ativistas foi a das libertações “ao vivo”, graças a alforrias concedidas por proprietários convencidos da nobreza da causa, ou pela compra de cativos a partir de fundos de doações, em espetáculos com direito a cenário, trilha sonora e figurino. Negros de branco eram libertados sob os aplausos incontidos da “sociedade”.

A produção do espetáculo exigia algum requinte e a presença de celebridades que lhes dessem uma aura. O compositor Carlos Gomes participou de algumas dessas operações. Em 27 de julho de 1880, no Teatro D. Pedro II, em homenagem ao próprio maestro, foi libertado, ao vivo, o escravo Julião, “conduzido pela mão da célebre cantora Durand, todo vestido de branco, no meio de ovações delirantes da plateia, onde senhoras, de pé, batiam palmas, jogavam flores e agitavam lenços freneticamente (Estrada, 2005, p. 81). Em setembro, em Campinas, ainda em homenagem a Carlos Gomes, o empresário William Van Vleck Lidgerwood libertou ao vivo outros dois escravos jovens.

Essa tomada de consciência, com suas operações teatrais, não se fez com uma simples abertura de cortina. A ideologia do senhor foi inculcada nas mentes dos cativos. Joaquim Nabuco, depois de uma derrota eleitoral acachapante, em 1886, 90 votos em 1.911 depositados nas urnas, chegou a se queixar de que negros livres votavam pelos candidatos escravistas (apud Conrad, 1978, p. 177). Ainda que poucos negros se deixassem contaminar, alguns cediam por uma lógica perversa de distinção. O efeito podia ser devastador. Os colégios eleitorais do século XIX eram reduzidos. Em 1881, o Rio de Janeiro, município neutro, tinha 5.928 eleitores, sendo 2.211 funcionários públicos, 1.076 comerciantes ou seus empregados e 516 proprietários; os demais eram profissionais liberais (Conrad, 1978, p. 178). Poucos votos decidiam muito ou tudo. A unidade na luta precisava ser absoluta.

Para Octávio Ianni, como assinala Robert Conrad (1978, p. 192), a abolição foi uma revolução branca. Em contrapartida, Joaquim Nabuco sabia que a abolição teria de se dar no parlamento, mas a partir da pressão das ruas. Ianni enganou-se. A abolição foi o resultado de uma luta conjunta na qual cada parte deu o que dispunha em cada momento do processo. Se no começo tudo era tabu, ao final tudo se discutia, até se mulher brasileira era escravocrata, tema tratado pela Gazeta da Tarde e abordado por Mercedes de Oliveira (Estrada, 2005, p. 95). A abolição contou com uma imensa rede dotada de nós mais ou menos complexos. As batalhas cotidianas articularam-se no contexto de uma guerra simbólica com direito a desobediência civil – no incentivo às fugas de escravos – e apropriação de elementos culturais capazes de tocar o imaginário, ou a alma, das pessoas, especialmente dos setores médios da população. A simbologia cristã virou instrumento de luta.

Ângela Alonso capturou o espírito dessa operação: “A estratégia do choque moral deu ao tropo do escravo sofredor, usado em literatura e em conferências-concerto, uma concretude selvagem. O movimento se apossou da simbologia cristã. Rui Barbosa comparou os reveses dos abolicionistas aos de Jesus, ao passo que O País coletava fundos para a emancipação sob a chamada ‘em nome de Cristo’. Antônio Bento nomeou o grupo herdado de Luís Gama de Caifazes, referência ao profeta que prometera a volta do filho de Deus para redimir o povo, e ideou um museu de horrores na nave de uma igreja – era membro da Irmandade dos Remédios –, com exposição de instrumentos de tortura, como um grande gancho de dependurar escravos. Ideia replicada em Campos e Recife. Bento fez do culto um meio de propaganda” (2015, p. 298). Era fundamental sensibilizar os espíritos vulneráveis. O movimento conseguiu enternecer o coração de senhoras católicas devotas.

Cada adepto conquistado para a causa era um pequeno passo na direção do objetivo fixado. A libertação de um escravo tinha de figurar como um acontecimento. Era uma cerimônia, um ritual, um momento de passagem. Um parágrafo de Ângela Alonso condensa a profusão de atos orquestrada pelos militantes da abolição: “De 1878 a 1885, o ciclo do protesto abolicionista teve por fulcro o proselitismo. Foram 587 manifestações no espaço público orientadas para persuadir a opinião pública e angariar novos adeptos. Seus intuitos ordeiros se materializaram num símbolo: as flores. Aos poucos, o repertório de técnicas de protesto se alargou” (2015, p. 230). O repertório dos abolicionistas era variado em formatos de ação: “As conferências-concerto transbordaram dos teatros. A concentração em jardins, que as precedia, se desdobrou na Corte em quermesses, feiras, alvoradas, serenatas, bem como em deslocamentos aos teatros (...) desfile, cortejo, parada, procissão cívica, marcha, marche aux flambeaux (com archotes). Disseminaram-se os meetings, à inglesa, aglomerações a céu aberto. De noite e de dia, muitas vezes com banda, passeatas e manifestações viraram rotina” (Idem, p. 230).

A ocupação das ruas e dos teatros não se fez sem confrontos nem tentativas de censura. Humberto Fernandes Machado estudou essa questão no espaço conflagrado do Rio de Janeiro: “A proibição de ‘ajuntamentos em  praças e ruas’ quase provocou um confronto de graves proporções, em agosto de 1887, quando a Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro organizou um meeting no Teatro Polytheama. Durante o discurso de Quintino Bocaiúva, explodiram bombas dentro do recinto. Em seguida, entraram ‘policiais armados de cacetes’, que lutaram com os assistentes. Após a expulsão dos policiais para o jardim, o recinto foi invadido por ‘um piquete de cavalaria e outro de infantaria’. O embate foi evitado após entendimentos mantidos entre os líderes e as autoridades policiais. Os espectadores foram para a Rua do Ouvidor, protestando contra o governo e aclamando a Confederação Abolicionista. A tentativa de proibição de reuniões públicas não surtia efeito, pela repercussão do abolicionismo nos vários setores da sociedade, inclusive pela resistência do próprio escravo (2003, p. 7). O Polytheama foi um dos palcos mais ocupados pelos abolicionistas nas suas representações.

As manifestações nos espaços públicos ou para públicos dependiam, de algum modo, ou em parte, da divulgação pelos jornais comprometidos com a abolição. Humberto Fernandes Machado estudou os limites da colaboração da imprensa com o abolicionismo: “Poucos órgãos da imprensa aderiram, sem subterfúgios, à campanha abolicionista. Muitos só defenderam o término incondicional da escravidão, quando se tornou impossível preservá-la em virtude das incessantes fugas dos escravos das propriedades e o apoio acentuado da sociedade para a sua eliminação. A opção clara em favor de uma solução para a ‘questão servil ocorreu na década de 1880, quando o cativeiro já estava em sua fase de agonia (2003, p. 3). Novidade?

Nem o 13 de maio de 1888 interessou a certos jornais considerados muito sérios: “Quando cotejamos, por exemplo, os números da Gazeta da Tarde, principal jornal abolicionista do Rio de Janeiro cujo proprietário era José do Patrocínio, e do Jornal do Comércio, reconhecidamente um órgão vinculado às atividades mercantis, no dia da extinção legal do cativeiro, percebe-se imediatamente as diferenças de abordagem. Enquanto o primeiro não publicava nenhuma matéria sobre venda ou aluguel de escravos, o segundo, naquela data, omitiu os debates do Parlamento sobre o projeto abolicionista, veiculando através de suas páginas anúncios a respeito do ignóbil comércio. Deve-se frisar que o Jornal do Comércio praticamente ignorou a campanha abolicionista, exceto por alguns artigos cujos espaços eram comprados pelos autores”, denominados ‘a pedidos’. Os abolicionistas consideravam os jornais como os documentos mais importantes para denunciar as mazelas do cativeiro. Para Joaquim Nabuco eles ‘fotografavam” a escravidão de uma forma ‘mais verdadeira do que qualquer pintura’” (Machado, 2003, p. 3). E do que a ficção.

Os relatos sobre as diversas etapas da luta pela abolição não param de aumentar graças ao trabalho de pesquisadores ligados a programas de pós-graduação em História. O movimento teve muitas faces e cores: pacífica, conflitiva, no parlamento, nas ruas, nos jornais, nos teatros, nas senzalas, nas praças, por toda parte. Brancos e negros trabalharam pelo fim do cativeiro. Três negros foram decisivos na propagação das diversas formas de luta: Gama, Rebouças e Patrocínio. Negros anônimos travaram os mais importantes combates no silêncio do cotidiano, aqueles que escapam aos historiadores pela falta de documentos escritos. Quantas conversas entre escravos devem ter acontecido nos “quadrados” a que estavam confinados? Quantas tramas, sonhos e projetos? Quantas ilusões, temores, apostas e encorajamentos? Quantos sussurros, cochichos, senhas e cuidados?

Quantas lágrimas de ódio, de impotência e de esperança foram vertidas? Quantas fugas foram organizadas, quando tudo se destravou, em noites febris e intermináveis? Quantas histórias foram levadas para sempre por esses homens e mulheres que poderiam afogar o mundo com narrativas intermináveis sobre cativeiro, utopia e liberdade? As penas mais brilhantes jamais poderiam descrever esses sentimentos compartilhados na solidão povoada das senzalas em berço esplêndido.
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O primeiro grande grito de liberdade, porém, foi dado por Zumbi.

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