Norbert Elias e o processor civilizador

Norbert Elias e o processor civilizador

Restrições que educam ou salvam

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      Um dos livros mais importantes do século XX é “O processo civilizador, uma história dos costumes”, de Norbert Elias. O autor visita a lenta evolução dos hábitos ditos civilizados. Por exemplo, manuais da Idade Média orientando a “não escarrar por cima ou sobre a mesa”: “não escarres na bacia quando estiveres lavando as mãos” ou “não escarres por cima da mesa como fazem os caçadores”. Hoje, ainda é possível dizer “não escarres no gramado como fazem os jogadores de futebol”. Um longo processo educacional fez de nós o que agora somos.

      Elias destaca um aspecto que deveria ser de conhecimento dos gestores municipais no combate à pandemia do coronavírus: “A sociedade burguesa aplica restrições mais fortes a certos impulsos, ao passo que certas restrições, que eram aristocráticas, são transformadas para se adaptarem à nova situação. Além disso, padrões nacionais mais claramente distintos de controle de impulsos são formados com base em vários elementos. Em ambos os casos, na sociedade aristocrática e nas sociedades burguesas dos séculos XIX e XX, as classes superiores são socialmente controladas em escala particularmente alta. O papel fundamental desempenhado por essa crescente dependência das classes superiores, como mola propulsora da civilização, será demonstrado adiante”. O leitor desta coluna terá de ir ao livro para saber mais.

      O que interessa aqui é simples: civilização implica restrições comportamentais. As “classes superiores” tiveram papel importante na assimilação e disseminação de hábitos salutares. O processo, contudo, nunca termina. Estamos de volta ao “lava as mãos”. Só que nem todos querem fazer isso. As novas restrições, por força do vírus, encontram resistência em todos os “andares” das nossas sociedades de massa. As ruas provam que o “fique em casa” não é ignorado apenas por quem precisa sair para ganhar a vida ou executar serviços essenciais. As aglomerações são praticadas com a mesma facilidade com que os medievais cuspiam na bacia enquanto lavavam as mãos e os jogadores de futebol contemporâneos cospem na grama onde pisam e rolam sem parar.

      “Adestrar” os seres humanos não foi tarefa fácil. Levá-los a tomar banho diariamente exigiu séculos de condicionamento. Em 1859, lia-se, em “The habits of good society”, esta pertinente observação: “Escarrar a todo momento é um hábito repugnante. Não preciso dizer mais do que – nunca se entregue a ele. Além de grosseiro e atroz, é muito ruim para a saúde”. Muita gente duvidava disso. Além do escarro literal existe o escarrar em sentido figurado. Escarra-se atualmente em cima da ciência. Ao longo do tempo, foi preciso ensinar a “não arrotar à mesa”, não se coçar nas partes íntimas com a mão que está pegando alimentos, coisas assim: “Uma porção que foi provada não deve ser devolvida ao prato de servir”, “não reponhas em seu prato o que estava em sua boca”, “não ofereça a ninguém o que já mordeste”. Tais restrições exigiram braço firme, determinação e até algumas sanções.

 


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