Nos passos de Beckett

Nos passos de Beckett

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Conheci o carioca André Lemos em Paris. Fomos colegas de doutorado em Sociologia entre 1991 e 1995. Foi amizade à primeira vista. Vi na casa dele a conquista do tetra pelo Brasil, em 1994. Radicado há muito tempo em Salvador, onde é professor no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal da Bahia, André é um dos maiores especialistas em cibercultura. Já publicou livros em parceria com feras como Pierre Levy. Graduado em engenharia, leitor compulsivo dos melhores romancistas mundiais, torcedor do Flu, vinha sinalizando que daria o salto para a ficção. Está feito. O resultado é um lindo romance intitulado “O fantasma de Beckett” (editora Sulina).

Salpiquei diferentes aspectos da biografia de André Lemos, numa aparente algaravia, para indicar o quanto admiro o seu percurso complexo, sinuoso e sofisticado sem perder o toque popular e enraizado no cotidiano. “O fantasma de Beckett” conta a história de uma mulher, entregadora de correspondências em Paris, em constantes e reflexivos itinerários de bicicleta, que decide, num jogo de coincidência, mudar-se para Dublin, a fim de repensar a vida. Na Irlanda, sem ter consciência disso, anda nos passos do grande escritor Samuel Beckett. Chega de spoiler. André morou em Dublin. A gente sente a cidade.

Sempre que falo de um livro gosto de fazer o leitor experimentar um pouquinho da fluência e da natureza do texto: “O táxi desliza pelas ruas molhadas, costeando casas com portas coloridas. Pessoas andam rapidamente nas calçadas. Bella afunda no banco e vê o mundo passar pela janela do Toyota Prius híbrido. Está em Ballsbridge, Dublin 4, para ver outro apartamento perto de Lansdowne Road, do Aviva Stadium, do Shelbourne Park, do Royal Dublin Society e Sandymount Strand. O lugar foi morada de Joyce, Kavanagh e Yeats. Podem-se ver placas nas casas onde nasceram ou moraram”. Uma doce melancolia exala das frases.

Gosto de romances em que um personagem se perde e se procura enquanto se inventaria e questiona com sutileza, solilóquios e medos. Talvez esse meu gosto venha do fato de que todos os dias me faço a mesma insistente pergunta: o que estou fazendo aqui? André Lemos faz da sua Bella um pouco de cada um de nós. É linda essa paixão do autor por livros num tempo em que tudo parece levar em outras direções. Não precisa temer o leitor que se horroriza com metalinguagem e citações. “O fantasma de Beckett” tem uma leveza permanente. Se fala de escritores, não se compraz em citá-los enfadonhamente. É criação pura.

André Lemos faz sua bela entrada num campo cercado com arame farpado. Como dizia Isaías Caminha, personagem visionário de Lima Barreto, é preciso passar pelos “árbitros de mérito”, seres encastelados nas suas fortalezas midiáticas. Que os deuses do jornalismo literário sejam generosos com ele e reconheçam prontamente o seu talento revelado num texto exuberante de sensibilidade e descobrimentos. Eu me fartei de belezas. Mas sou apenas um rapaz palomense sem qualidades no bolso nem poderes para fazer reputações.

 

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