Nossas raízes conservadoras

Nossas raízes conservadoras

Hierarquias construídas ao longo do tempo

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      Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos tataravôs? A releitura dos clássicos indica que sim. Para Sérgio Buarque de Holanda, hoje reduzido à condição honrosa de pai de Chico Buarque, em “Raízes do Brasil”, o problema era que as ideias europeias não casavam com o meio hostil, criando “desterrados em nossa terra”. O célebre historiador e ensaísta teve umas sacadas que o tempo vem desconstruindo. Por exemplo: “No fundo, o próprio princípio de hierarquia nunca chegou a importar de modo cabal entre nós. Toda hierarquia funda-se necessariamente em privilégios”. Justamente, caro mestre, a cultura brasileira é um complexo sistema de hierarquia social baseado em privilégios de relações pessoais.

      Sérgio Buarque explorou a dicotomia ética do trabalho versus ética de aventura. Seríamos o produto da segunda. Ou seja, geridos por homens brancos sem amor pelo batente. Amparado em comparações que parecem cada vez mais duvidosas, Sérgio Buarque disse coisas que embalaram nossas hierarquias dissimuladas durante muito tempo: “Entre nós, o domínio europeu foi, em geral, brando e mole”. Se um alvará de 1726 proibia “mulatos”, até a quarta geração, de exercerem cargos públicos, uma ordem da Coroa, de 1731, determinava ao governador de Pernambuco que aceitasse em cargo um bacharel na medida em que “o defeito de ser pardo não obsta para este ministério”. Era, porém, a conveniência, não o principio social.

      Vendeu-se a ideia de que “o peculiar da vida brasileira parece ter sido, por essa época, uma acentuação singularmente enérgica do afetivo, do irracional, do passional”. Por trás dessa astúcia, ergueu-se um poderoso sistema de separação social sob a forma dissimulada de mistura. Todos juntos, mas separados. O Visconde de Cairu, economista, político e conselheiro áulico, o homem que contribuiu para a abertura dos portos às nações amigas, sustentava que a maior riqueza humana é a inteligência. Dizia-se que era a terra ou o trabalho. Os ricos, contudo, não trabalhavam. Era preciso encontrar algo que lhes desse um lugar de honra na cadeia produtiva. Cairu errava na época ou se antecipava amplamente. Ele foi um dos primeiros a acumular cargos e proventos. O príncipe regente concedeu-lhe “a regência de uma cadeira de aula de Ciência Econômica, criada no Rio de Janeiro, com o ordenado de 400$000, cumulativamente com proventos de outros cargos que exercia na Bahia”. Furaria o teto.

      O tráfico de escravos foi proibido em 1831. A lei não pegou, mas não foi revogada, sendo reafirmada por outra em 1850. Sérgio Buarque foi mais preciso ao mostrar como se fez o contrabando: “Voltando da costa da África, e após o desembarque da carga humana, entrava o barco com sinal de moléstia a bordo. Por 500$000 o oficial de saúde passava o atestado comprobatório, e o navio ia fazer quarentena no distrito de Santa Rita, cujo juiz de paz era sócio dos infratores. Removiam-se, então, todos os sinais denunciadores do transporte de negros e por 600$000 se adquiria nova carta de saúde, limpa desta vez”. O brasileiro não era cordial, mas astuto, dissimulado e corrupto. Quando se tentou criar um banco rural e hipotecário, grandes proprietários disseram que era coisa de socialista.


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