Nu frontal em nome da transparência

Nu frontal em nome da transparência

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A coragem me fascina.

Transfigura os homens, seres tão fracos.

Os antropólogos inventaram a diferença cultural incriticável.

É a opinião deles. Nada mais.

Eu tenho uma máxima.

A intervenção na cultura dos outros deve ser mínima. Mas, em certo casos, inevitável.

O islamismo tende a abusar das mulheres. Não é diferença. É dominação.

Mesmo na Tunísia, mais liberal, o machismo religioso comanda.

Daí a minha admiração por Amina, jovem de 18 anos que, em 2013, postou na internet uma selfie fumando, lendo, de lábios vermelhos e com uma inscrição em árabe no peito nu: “Meu corpo me pertence. Não é fonte de honra de ninguém”.

Foi chamada de vadia, teve de esconder-se, foi submetida a um exorcista e não cedeu.

O celular do exorcista tocava durante as sessões com Amina. O homem dizia que era um sinal de que a guria estava possuída pelo demônio. Ela lhe deu a resposta mais genial possível: “Quando seu telefone toca é sinal de que alguém te ligou". A isso se chama normalmente de abordagem racional. Para cada efeito, uma causa. Amina continuou seus protestos. Escreveu no muro de um cemitério a palavra Femen (nome de um grupo feminista europeu que protesta mostrando os seios). Foi presa. Manteve-se firme. Libertada, mudou-se para a França, onde terminou o ensino médio. Os machos da Tunísia pensavam estar livres dela. Passados dois anos, Amina voltou para casa. Está lançando uma revista feminista em árabe: Única. Enquanto vlogueiros de sucesso falam de pastelina em seus vídeos geniais, Amina luta.

O jornal Le Monde classificou o deputado brasileiro Jair Bolsonaro como racista e homofóbico. Por aqui, ele é chamado de polêmico e controvertido. A covardia e a mediocridade imperam. Amina, no Brasil, seria chamada de radical, xiita, extremista e chata. É moda atacar o feminismo e o politicamente correto. Vivemos a era da inversão. Guilherme Fontes passou 20 anos tentando fazer o filme Chatô. Foi acusado de mau uso de dinheiro de lei de incentivo. Finalmente a obra está em cartaz. É muito ruim. A crítica, no entanto, tem adorado. É muito ruim por inventar certa cronologia que não existiu. Faz-se de chacrinesco e antropofágico para esconder a falta de costura. É um sopão sem tempero. Tenta fundir Carlos Lacerda e Samuel Wainer num personagem inverossímil. Chatô é uma farsa.

O que está faltando é um nu frontal que faça sentido. Confunde-se renovação de público com infantilização e adoção de imaginário adolescente. A menina Amina vem dando lições de maturidade. No Brasil, para ficar famosos, jovens investem no racismo contra celebridades. Falta perspectiva histórica. As redes sociais são o palco do ressentimento conservador. Em vez de mais democracia, pede-se a volta da ditadura. Falta quem explique a esse pessoal que, se não existem mamíferos de cor verde, há uma razão natural para isso. E as preguiças? Também tem explicação. Também há explicação histórica para a dominação masculina. Amina compreendeu isso bem cedo. A inscrição no seu corpo é uma chibatada no machismo e no relativismo: “Meu corpo me pertence. Não é fonte de honra de ninguém”. Frontal. Nu. Transparente.

Coragem suprema que transfigura a fragilidade humana.

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