Nunca tive a tentação do exílio

Nunca tive a tentação do exílio

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      Albert Camus via no suicídio o único tema realmente importante. Eu, do alto da minha relevância existencial, à espera do Nobel, que, se não vier, tudo bem, Borges também não o recebeu, considero o exílio como um assunto tão essencial quanto o suicídio. Há o drama dos refugiados, que são obrigados a partir dos seus países. Esses não escolhem o exílio. São escolhidos por ele. Ou condenados a ele. Se puderem, em maioria, voltam. Quantos, mesmo sem guerra ou intolerância de alguma ordem, partem acossados pelo desemprego? Nada mais fácil de compreender. A forma de exílio que me intriga é a dos que poderiam ficar e, mesmo assim, decidem ir embora. Vivi o suficiente no exterior para ter uma ideia bastante consolidada sobre essa questão complexa.

Por que alguém parte podendo ficar entre os seus? Ou parte justamente para se livrar dos seus? Por que alguém ao final da vida junta as suas economias e vai morar, por exemplo, em Portugal ou nos Estados Unidos? Sei que a busca por segurança conta muito. Quem ficou traumatizado depois de um assalto à mão armada pode ver na expatriação um alento contra os seus temores justificados. Por outro lado, como suportar o isolamento inevitável, a distância do imaginário afetivo, dos lugares carregados de lembranças, dos espaços significativos, das pessoas encontráveis por acaso na volta de uma esquina? Como se separar daquilo que costuma ir junto e sempre reclama atualização?

Quem vive no estrangeiro, por mais adaptado que esteja, nunca deixa totalmente de estar entre parênteses. Está, mas não está, faz parte sem ser parte. Não haverá uma ilusão disseminada, uma idealização de certos lugares, que não teriam corrupção nem violência, muito menos burocracia, onde todos seriam gentis, cultos, educados e corretos? Cada vez que alguém vai embora, sendo que podia ficar, eu reflito sobre a situação. Fico deslumbrado. Para mim, são cases. Chego a formular uma hipótese extrema: a solidão do autoexílio cria a sensação de que algo está acontecendo e preenche um vazio existencial.

Nessa minha hipótese absurda o que se busca no exílio é menos a segurança e o funcionamento perfeito da sociedade e mais o sentimento de deslocamento. Estar dentro de algo paradoxalmente por se encontrar fora. Conheci muitas pessoas que haviam se mudado para a Europa em busca do que não encontravam no Brasil. Boa parte vivia conectada ao ponto de origem. Um autoexilado com o qual convivi um pouco passava meses falando bem do Brasil, que só desancava quando visitava. Era uma relação estranha de amor e ódio. Bom era o lugar onde não estava. O que havia naquele espírito inquieto e insaciável? Uma brecha. Uma ferida. Estar no seu lugar representaria uma obrigação de ser algo.

O quê? Não sei. Algo que ele imaginava fundamental. Estar fora, em trânsito, deslocado, entre parênteses, abstraído, dispensava-o aparentemente de ser o que deveria ser de acordo com sua exigência implacável. O exílio era uma fuga para frente que aplacava a culpa sentida por não conseguir dar o salto para esse lugar de realização com o qual se sentia comprometido. Era como se dissesse a cada segundo: preciso fazer algo grandioso, mas agora não dá, pois estou fora. Viver no exterior ocupa o imaginário. Por um lado, é necessário adaptar-se a cada dia conquistando território e identidade. Por outro lado, nunca se para de pensar no que ficou para trás. Não se pensa necessariamente com tristeza. Pode ser com alegria. Ocupa da mesma forma. O exilado vai embora para ter mais perto de si o que deixou.

Outro cara que conheço me possibilitou uma investigação. Aproveitei um encontro para fazer-lhe algumas perguntinhas:

– O que tu fazes tão longe?

– Fico livre do que me sentiria obrigado a fazer se não estivesse aqui. Vivo num lugar mais tranquilo e não me pressiono demais.

Não me aprofundei. Em cada exílio que poderia ser evitado eu vejo uma luta corporal travada consigo mesmo por quem parte. Vida de correspondente de jornal no exterior é curiosa. A pessoa escreve coisas que são comentadas no seu país, onde pode ser muito conhecida. No lugar onde mora, sobre o qual escreve, porém, ninguém é o conhece. Anônimo onde vive. Famoso onde é lido ou ouvido e não vive. Conheci um correspondente que lia os seus textos para os vizinhos de maneira a sentir-se menos estranho. Aos poucos, sugeriam-lhe pautas, contavam problemas, reclamavam do prefeito. Ele se via em casa. Teve uma briga:

– Que houve? Está me evitando? – perguntou a um vizinho.

– Não concordo com nada do que escreve.

– Vou para então de ler os meus textos.

– Não faça isso. Estou adorando essa nossa discordância.

Nunca pensei em fixar residência no exterior. Não critico quem vai embora. Quem sou eu para julgar? Comento. Como viver num lugar sem encontrar repentinamente alguém, um garçom ou taxista, que diga:

– Agora vai!

– Quem vai?

– O colorado, ora.

Como viver num lugar sem nunca ouvir coisas assim:

– Está frio de renguear cusco. Ovelha não é pra mato.

 

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