O ano espantoso dos canibais do Estado

O ano espantoso dos canibais do Estado

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Apesar de velho e calejado, eu ainda me espanto. Em 2015, houve muita coisa espantosa. Rafael Moura, para quem o conhece ou se interessa por futebol, continuou no Inter, ganhando mais de 400 mil reais por mês, e deve até ter feito algum gol. O Grêmio tocou cinco no Inter. O governador de São Paulo, o tucano Geraldo Alckmin, que não adotou medidas sérias a tempo de diminuir os estragos da seca, recebeu um prêmio de “gestão hídrica”. O governo da presidente Dilma trocou, antes do Natal, o ministro, dito neoliberal Joaquim Levy, pelo seu oposto, o desenvolvimentista Nelson Barbosa, para que este faça passar o que o outro não conseguiu: uma reforma dita neoliberal da legislação trabalhista e da Previdência. Que ano espantoso.

O mais espantoso veio quase no apagar das luzes. As associações de procuradores da República e procuradores do Trabalho entraram na justiça para reclamar pagamento de auxílio-moradia a membros do Ministério Público casados entre si. Auxílio-moradia para magistrados e procuradores já é indecente e existe graças a uma liminar do ministro Luís Fux. Diante da possibilidade, prevista na lei orçamentaria de 2016, de que deva ser regulado por lei específica, o pessoal resolveu que marido e mulher devem receber cada um o seu. Canibalismo puro. Sempre que são contrariados nos seus interesses, os canibais alegam “afronta ao ordenamento jurídico”. A vanguardista Santa Catarina já estava pagando o auxílio-moradia duplo e endogâmico. O presidente do STF, Ricardo Lewandowski, suspendeu a orgia. É visto como serviçal do governo petista. Os franceses, com suas fórmulas, certamente exclamariam fazendo bocas e biquinhos:

Du jamais vu!

O espantoso é que enquanto o STF não julga o mérito, o dinheiro entra. Depois, se for considerado indevido, ninguém devolverá um centavo por ter recebido de boa fé. O mais espantoso é o argumento em defesa do auxílio duplo para quem já tem onde morar e já recebe um auxílio: não pagar duas vezes “fere o princípio da igualdade entre os membros de uma mesma instituição ou semelhante, pois conceder o benefício ao membro solteiro seria privilegiá-lo em detrimento daquele que decidiu constituir família”. Uau! Imagino a família que mora num barraco lendo esta alegação do advogado dos canibais: “Pensando em um suposto caso concreto, seria justo o membro casado e com filhos residir em um imóvel idêntico ao membro solteiro que reside sozinho? A princípio, pressupõe-se que manter um lar familiar seria mais dispendioso, a começar pelo tamanho do imóvel!”

O Rio Grande do Sul só pagaria o auxílio-moradia simples por ter sido “condenado” a fazê-lo. Espantoso também é que, no dicionário, condenação não possui sentido positivo para o réu. É bem provável que o imoral auxílio duplo seja pago antes da lei moral do piso do magistério. No Brasil, há leis que não pegam e leis que o Estado pode descumprir sem ser incomodado. Pedalar não pode. Dever para a plebe e não pagar é permitido.

Eu me espanto. Sou ingênuo.

 

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