O capitão no seu labirinto

O capitão no seu labirinto

Bolsonaro ouve o ronco das ruas e reage mal

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O presidente Jair Bolsonaro começa a ficar encurralado. E reage como se estivesse num curral: aos coices. Chamou de idiotas úteis os manifestantes que foram às ruas aos milhares protestar contra os cortes na educação. Foi chamado de "idiota inútil" pelos ofendidos. Enquanto isso, seu filho, o senador Flávio Bolsonaro, teve seus sigilos fiscal e bancário quebrados e fica cada vez mais próximo de revelações incômodas. Onde o anda Queiroz? A resposta parece estar chegando.

Se as centrais sindicais penam para colocar gente nas ruas, Bolsonaro consegue com facilidade: cada grosseria que diz aumenta o número de pessoas gritando contra ele por toda parte.

Não é de duvidar que as ruas comecem a rugir contra a reforma da Previdência. Há quem diga que a população não consegue entender as medidas em discussão. É bastante simples: todos vão perder.

Bolsonaro acha que as universidades públicas são antros de "espertalhões".

O mundo universitário acha que o governo dele é uma caverna escura.

Preso no seu labirinto, o capitão vê a família ameaçada por investigações policiais.

Recua e volta a recuar. Doze deputados ouviram-no telefonar para o ministro da Educação e mandar acabar com o corte nas verbas das universidades. Ou o telefonema era fake ou a ordem não foi cumprida. O presidente revelou que acertou com Sérgio Moro uma troca: o juiz virava ministro e recebia como recompensa a primeira vaga disponível no STF. Encurralado, Moro desmentiu.

Quem fala a verdade: Moro ou Bolsonaro?

Quem dá as ordens?

*

Caminha dentro da noite como um fogo ardendo na solidão de um farol. Não sabe o que diz nem o que sente. Apenas aguarda a luz do dia para se lembrar do que foi quando queimava de vontade de viver e de mudar o mundo. Recorda-se dos amores esquecidos e dos compromissos com os assuntos úteis para a comunidade. Navega como um barco a deriva, padece feito uma catedral em ruínas, afunda os pés nos caminhos nunca mais cruzados, cantarola uma canção de ninar, repete para si uma ordem inclemente:

– Hoje, como nunca, direi tudo o que sou, o que fui, o que serei.

      Quer agarrar a essência da existência como quem captura não o pássaro, mas o seu voo, a curva descrita na placidez azul de um céu de vilarejo. Esquece a concretude do mundo na sua obsessão pelas palavras, essas miragens feitas de sons e de imagens que nunca se deixam prender na gaiola de um texto. Sente pudor em largar tudo para encurralar lembranças. Sabe que não faz mais parte da confraria dos produtores, dos produtivos, dos construtores de realidade. Afaga o tecido da noite como quem estremece ao roçar de um veludo, talvez a recordação suave de um vestido caindo.

      Avança para o seu destino com a certeza de escolher o que deseja, embora apenas deseje escolher uma certeza para o seu destino ou outro destino para a sua certeza. Recolhe estrelas, fotografias, cacos de conversas, fragmentos de uma trajetória, camadas arqueológicas de uma vida dedicada ao crepúsculo, à aurora e aos anacronismos. Reflete sobre essa busca incansável e permanente pela tradução de si mesmo enquanto se perde em línguas diferentes, em delírios recorrentes e em sonhos que pesam como correntes ou estranhamente boiam na correnteza dos anos que repassam.

      Queima dentro da noite como uma vela num quarto de pensão. Olha-se no porta-retratos com imenso carinho. Está ali, ao alcance das mãos e dos olhos, sem poder ser tocado, pois na imagem é concretamente aquilo que foi e etereamente aquilo que será quando for pássaro, vela, voo e eternidade. Se pudesse, escalaria as nuvens só para mudar o ponto de vista. Já se comprometeu em demasia, já brigou pelo que lhe dizia respeito, já morreu quando vivia o apogeu das expectativas, renasceu quando nada mais esperava. Só não se acostumou a ouvir insultos e elogios condescendentes.

      Acorda cedo para sentir a suavidade da manhã, abre a janela, como se estivesse no campo, para sentir os perfumes da natureza que sempre exalam das suas memórias, essas pedras esculpidas no seu imaginário, essas rochas que resistem aos incêndios do tempo e servem de trampolim para o salto no escuro. Sonha viver o que nem imagina enquanto se apega cada vez mais ao seu lugar, do qual não se vê separado nem mesmo para habitar o paraíso. Arde na madrugada como uma chama que se perdeu da fogueira. Sozinho dentro da noite, corpo em brasa, mente fervilhando, recolhe-se ao mais íntimo da sua fortaleza para se ver em campos abertos, cabelos ao vento, soprando:

– Hoje eu quis escrever a mais suave página da minha vida!

 


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