O destino de um negro durante a revolução farroupilha

O destino de um negro durante a revolução farroupilha

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As danadas e perniciosas máximas espalhadas com a detestável revolução!

Paulo Staudt Moreira

Historiador, professor da Unisinos

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Entre setembro de 1835 e junho de 1836, Porto Alegre ficou sob o controle dos revolucionários farroupilhas, vivendo seus moradores tempos inquietos. A guerra civil que se espraiou pela província sulina, devastando-a economicamente, alimentou expectativas díspares nos setores sociais e étnicos. Expectativas geradas a partir de (re)interpretações dos discursos e das práticas das lideranças farroupilhas e legalistas, impactaram vivências e projetos individuais e familiares.

Em abril de 1837 foi preso o mulato Maurício Antônio Alves, enviado da cidade próxima de Triunfo. Ele era escravo de Antonio Pedro Frazão de Lima e um dos: "piores que se tem prendido das Comissões de Palmatória e Chicote; seu senhor, homem também de mui pouca confiança, e morador em Porto Alegre, há pouco lhe deu sua Liberdade, talvez em remuneração de seus crimes".

Frazão de Lima informou que recebeu o pardo claro Maurício como herança de sua sogra: "o qual criou desde pequeno e educou com mimo a ponto de matriculá-lo em um Colégio no Rio de Janeiro, na idade de 12 anos, em 1830, com o fim de felicitá-lo, e donde voltara em 1832 sem nada aproveitar, pela sua reconhecida inabilidade física e apoucamento de juízo (fazendo, contudo, despesa ao Suplicante de mais de 600$000 réis), o mandou então ensinar a Colchoeiro e a Alfaiate, em cujo Ofício trabalha como oficial desde 1835".

O apoucamento de juízo de Maurício encontrou condições objetivas de transformar-se em insubmissão quando da guerra civil. Segundo Frazão de Lima, justamente no ano da Revolução de 20 de Setembro, Maurício promovia uma subscrição para alforriar-se. As coisas começaram a se alterar perigosamente quando Maurício foi auxiliado por um tal velho Cascais: "Este couto e apoio, dado pelo tal velho, a companhia de outros mulatos também do seu Oficio, à mistura com as danadas e perniciosas máximas espalhadas com a detestável revolução, penetraram não só em muitos brancos, mas na classe mista, de forros e escravos, que desde logo se julgavam libertos! É nesta conjunção que, ficando o mulato fora de casa [... em a noite do dia 19 ou 20 de Novembro de 1835, tempo em que já começavam os massacres, foi induzido e embriagado por outros mulatos, e entre eles envolvido e preso pelo insulto feito a um moço branco na rua da Praia, donde lhe resultou ir para a Cadeia e ser na Madrugada seguinte açoitado [... em cujo ato caiu sem sentidos, como morto, o referido mulato!".

No único depoimento que prestou, ao Juiz de Paz e Padre Francisco de Paula Macedo, o pardo Maurício declarou ser de Porto Alegre, ter 20 anos, solteiro. Candidamente respondeu que ignorava o motivo de sua prisão. Maurício viveu sete meses encarcerado, sem culpa formada, uma licenciosidade jurídica legitimada pela inquietude bélica reinante. Indagado pelo Juiz-padre Macedo se “tinha andado com outros por esta Cidade, no tempo do Governo intruso, dando bolos e chicotadas em algumas pessoas”, Maurício negou e disse que, mesmo inocente, fora preso “por uns homens em uma noite, e recolhido á prisão e ai no outro dia foi açoitado”.

As vicissitudes biográficas do pardo claro ou mulato Maurício, nos permitem algumas reflexões. Durante a tomada da capital da província pelos anarquistas farrapos, foram formadas, como vimos, Comissões de Palmatória e Chicote (ou vergalho), que disseminaram o terror executando punições públicas àqueles que não compactuavam com o protesto contra o governo imperial.

Claro que numa sociedade profundamente alicerçada na posse escrava, com uma população cativa considerável, estas farras possuíam um potencial elevado de desregramento ou inversão da ordem. Procurando inocentar o seu escravo, Frazão de Lima destacou o seu apoucamento de juízo e o fato de ser "embriagado por outros mulatos". Destaque-se que aquele motim não parece ter sido uma reação espasmódica daqueles mulatos, mas uma ação consciente com motivações e direcionamentos claros, já que o principal atingido foi um moço branco, na rua da Praia.

Fruindo com as palavras, lembremos que embriagado comporta definições variadas. Fica-se bêbado com a ingestão de bebidas alcoólicas, mas também nos embriagamos de paixão - "O amor, ira, ódio, aversão ou qualquer apetite e afeto imoderado e violento". O pardo claro Maurício talvez já viesse apaixonado da Corte, onde compartilhou experiências com uma vasta comunidade negra (escrava, liberta e livre), habitante do maior porto escravista atlântico daquela época. Estas comissões podem ser percebidas como um ritual político, mesmo que em pequena escala, onde momentaneamente estes mulatos abandonavam o papel secundário que lhes era atribuído neste jogo bélico das elites. Elas representavam o risco permanente daquela guerra civil metamorfosear-se em revolução.

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Referências bibliográficas

CARVALHO, D. V. de. 2013. Nas fronteiras da Liberdade: experiências negras de recrutamento, guerra e escravidão (Brasil Meridional - 1830-1850). Rio de janeiro, Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 367 p..

CARVALHO, D. V. de; OLIVEIRA, V. P. de. 2008. Os Lanceiros Francisco Cabinda, João Aleijado e preto Antonio e outros personagens negros na guerra dos Farrapos. In: Silva, Gilberto Ferreira da; Santos, José Antonio dos; Carneiro, Luiz Carneiro da Cunha. (Org.). RS Negro: Cartografias sobre a produção do conhecimento. Porto Alegre: EDIPUCRS, p. 63-82.

FRANCO, S. da C. 2000. Porto Alegre cidade sitiada (1836-1840). Um capítulo da Revolução Farroupilha. Porto Alegre: Sulina, 126 p.

SILVA, Juremir Machado da Silva. 2010. História Regional da Infâmia. O destino dos negros farrapos e outras iniqüidades brasileiras (ou como se produzem os imaginários). Porto Alegre/RS: LP&M.

 

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