O espectro de Dante

O espectro de Dante

Em 2021, o mundo renderá homenagens ao poeta que morreu há 700 anos

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      É o caso de afirmar sem vergonha de plagiar ou parafrasear: um espectro ronda o mundo. O espectro de Dante Alighieri. Talvez nenhum poeta seja tão famoso quanto ele. Em 2021, os 700 anos de sua morte, em 13 ou 14 de setembro de 1321, serão motivo de eventos de todo tipo. A Itália prepara uma grande exposição em Forli, na Emilia-Rogmana, de 12 de março a 4 de julho, se a pandemia não voltar a atrapalhar a vida cotidiana. O objetivo da mostra será dizer quem foi Dante, o que ele fez, como praticamente inventou a língua italiana e por que se tornou referência universal em poesia. Uma pergunta suspira: quem o lê?

      Seria Dante, autor de “A divina comédia”, que originalmente se chamava apenas “comédia” (canto com final feliz, caso se possa falar assim, terminando no paraíso), uma figura tutelar citada, mas não lida? A sua obra-prima, viagem por inferno, purgatório e paraíso, tem cem cantos. Não é fácil compreender certas metáforas dependentes do contexto da época. Umberto Eco, numa das entrevistas que fiz com ele, quando segui o seu curso no Colégio da França, me disse que para obter o grande prazer estético é preciso carregar pedra montanha acima. Dante não entrega os seus prazeres de graça. Vale, porém, o esforço.

      A vida dele foi turbulenta em maio ao conflito entre guelfos (partidários do papado) e gibelinos (partidários do Sacro império Romano Germânico, que, segundo historiadores, não era muito sacro nem muito romano). Ele pertencia à facção dos guelfos brancos. Havia também os guelfos negros. Pode-se dizer que era época de polarização e de ódios incontidos. Para complicar as coisas, que nunca foram simples, há quem diga que os guelfos brancos eram gibelinos dissimulados. Naquela época, a política fazia estragos, gerava visões inconciliáveis e botava muita gente na cadeia. Versátil, Dante lutou em batalhas gravadas na história, foi médico, farmacêutico e agitador político. Acabou proscrito em Roma, condenado ao exílio por dois anos.

      Ser poeta não era para os fracos naquele tempo. Hoje, os fortes estão nos bancos contando o vil metal. Cada verso nos tempos de Dante podia desencadear vinganças e punições terríveis. A palavra tinha força de espada afiada e sempre à mão. Dante era uma figura estranha. Apaixonou-se, aos 18 anos de idade, por uma Beatriz, que teria visto uma única vez na vida, e fez dela a musa dos seus cantos. Deve ser um dos casos mais extremados de amor platônico. O que ele viu na jovem que o seduziu para sempre? Nunca se saberá. Vida de celebridade tem seus mistérios. Pouco se sabe de certo sobre a educação de Dante. O semiólogo francês Roland Barthes defendia a necessidade de compreender a retórica de Dante como herdeira transfigurada da antiguidade: “uma organização total da palavra falada”. Roland Barthes salientava que Dante seguiu cursos de retórica na Universidade de Bolonha. As “artes poéticas”, triunfo de certa retórica, pouco tinham a ver com o imaginário poético atual. Dante bebeu em muitas fontes e as superou.

      Afinal, o que ele cantava? A palavra ou a forma? Talvez as armadilhas do discurso: falar para ser identificado. Para Barthes, em Dante as palavras contidas nas obras deveriam ter vários sentidos: um sentido literal, outro alegórico (filosófico), um sentido moral e, por fim, um sentido que se poderia chamar de projetivo: o que se deve esperar? Fazer poesia, como se vê, exigia muito investimento intelectual e comprometimento social. Era um ato político. Barthes gostava dessa polifonia circulante, vertiginosa, sempre moderna. Não se escrevia impunemente. Era preciso ter algo para dizer e ser responsável pelo dito. Responsabilidade implicava um uso do corpo.

      Barthes, leitor de Dante, compreendeu e ensinou que a verdade da literatura se encontra nessa simultaneidade de sentidos que se complementam ou contrariam. O jogo se joga no entrechoque de possibilidades. A verdade da ficção está na exploração das probabilidades. Dante praticou, enfatizava Barthes, “uma vigorosa consciência semântica da obra”. Ele sabia que estava contido naquilo que narrava. Nesse sentido, Dante seria o pai da modernidade literária. Gosto desta conclusão de Roland Barthes a partir da escrita de Dante: “O autor tem o direito de fazer a teoria semântica da sua obra”. Ele faz a obra e pensa os seus significados em movimento. Paga o preço da sua audácia, expõe-se ao julgamento do leitor abismado.

      Sem negar Barthes, imenso na sua erudição e nos seus lampejos teóricos, vejo em Dante o narrador dos itinerários possíveis de qualquer homem que se aproxima de si com a passagem do tempo. No canto I do Inferno da sua Comédia, Dante dá o tom com assustadora clareza: “Da nossa vida, em meio da jornada,/Achei-me numa selva tenebrosa,/Tendo perdido a verdadeira estrada”. O filósofo Jean Baudrillard tirava dessa abertura um fechamento: em algum momento a estrada deixa de ser um caminho. Torna-se uma jornada. Bifurca? Mais e menos do que isso: impõe-se como trajeto percorrido. O espectro de Dante ronda a arte. Ele se infiltra na poesia até de quem não o lê.

      Então Bibo Nunes escolhe o reitor da UFRGS. Por ideologia.


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