O homem que matou Juan Dahlmann

O homem que matou Juan Dahlmann

Uma história de eterno retorno às origens

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      O homem que desembarcou na estação ferroviária de Palomas, em 3 de setembro de 1971, chamava-se Juan Dahlmann Nieto e era argentino. O seu avô, Johannes, chegara à América do Sul no longínquo ano de 1871. O seu pai, com um exemplar de “As mil e uma noites”, viajara de trem de Buenos Aires para morrer no Sul, em busca de sua estância, em 1939. Como disse aquele que contou, ou inventou a sua história – nunca se sabe o quanto há de ficção numa verdade ou de verdade numa ficção –, a vida gosta de simetrias e de leves anacronismos. Gosta também de homens que retornam a lugares onde nunca estiveram. No túmulo em que descansa o misterioso portenho de nome germânico, no pequeno cemitério da campana gaúcha, aparecem um nome e uma data: Juan Dalman, 3.9.71.

      Dalman disse ao chefe da estação que vinha retomar suas terras e que precisava de lugar para dormir uma noite. Não informou onde se situavam essas terras. Parecia meio confuso. Olhava a paisagem como se a descobrisse. Viu a savana a perder de vista para trás da igrejinha e sorriu como quem se tranquiliza ou como quem reconhece um lugar. Caminhou com passos nem lentos nem rápidos até a venda, no centro da vila, que lhe foi indicado. Meneava a cabeça, farejava o ar. Caía a tarde. Havia chovido mansamente. Pássaros cantavam como acontece depois de certos aguaceiros. O ar estava fresco e muito perfumado.

      Entrou no estabelecimento com passo vacilante exibindo a cicatriz que trazia na fronte. Numa mesa, três homens jogavam cartas. Num canto, num banco coberto por um pelego vermelho, um velho centenário lia um volume muito grosso, de mais de mil páginas.

– Um homem marcado pra morrer – disse um dos jogadores de cartas.

      Rubem, o dono da casa, tratou de acomodar o visitante na única mesa disponível, para a qual foi buscar uma cadeira atrás do balcão. Serviu-lhe um copo de vinho tinto enquanto gritava para dentro pedindo que trouxessem linguiça assada, pão e batata doce. Depois, falou:

– Que vem fazer na Fronteira Oeste?

– Oeste? Não estamos no Sul?

      O velho do livro grosso riu alto. Gostava de dizer que a vida obriga alguns a contar sempre as mesmas histórias e que a história de cada um não passa de uma variação da busca de todos pelo destino. Por alguns momentos, todos se ensimesmaram nas suas lides. O velho mergulhou nas páginas do seu tijolo. Os jogadores estavam fixados nas suas cartas. Rubem examinava o desconhecido sem curiosidade. Dalman deteve-se na coloração do vinho como que procurando uma luminosidade. Da cozinha, vinha um cheiro de linguiça assada. Pela janela, via-se ainda uma nesga de campo, de céu, de árvores e de algo indefinível.

      Foi nesse momento que um dos jogadores, de feições indiáticas, jogou uma bolinha de pão no recém-chegado. A migalha aterrissou no pescoço robusto do estrangeiro, cujo espanhol cerrado não surpreendia nenhum daqueles homens acostumados ao castelhano. Dalman ignorou o primeiro dardo, mas não o segundo, pois o provocador foi mais rápido:

– Sou eu, aqui, olhe.

      Dalman virou-se na direção daquela voz. Mas não parecia olhar para o agressor. Havia um imenso vazio nos seus olhos. Murmurou:

– O sul termina onde começa a eternidade.

      O velho leitor sobressaltou-se no seu pelego. Os jogadores lembravam estátuas. Só o desafiante sorria mostrando dentes amarelados pelo fumo desfiado. Disparou mais uma bolinha de pão dormido. Acertou o rosto do argentino, que se pôs de pé com as mãos rígidas e ásperas.

– Um homem, quando volta, não aceita humilhações.

– Venha salvar a sua honra então – disse o índio.

      Falou assim e já se lançou pela porta tilintando as esporas. O desafiado saiu hesitante, quase trôpego, como se tivesse muita dificuldade para reconhecer o caminho. Encheu o peito de ar quando se sentiu do lado fora e até sorriu. O sol morria alaranjado quando os dois se viram frente a frente tendo como pano de fundo a vastidão da pampa, campos planos a perder de vista, uma paz quase celestial enquanto o inferno queimava o rosto do estrangeiro, transido de febre.

      Quando Dalman sentiu, tinha uma arma na mão. O tiro que o matou foi seco. Rubem, ajoelhado sobre o corpo, questionou timidamente:

– Por que mataste este cego?

– Por isso mesmo. Não viu o que devia ter visto no tempo.

– Como sabe?

– Por ser um vencido.

      Nesse momento, quando o último resto de sol desapareceu com um derradeiro tom vermelho, ouviu-se um baque surdo dentro da venda. Encontraram o velho, com seu rosto encarquilhado, estendido no chão. Perto dele, o livro verde ensebado que sempre folheava –  Borges Obras Completas – aberto na página 525: El Sur. Rubem agachou-se junto ao agonizante, que sussurrou com uma voz suave como nunca havia sido:

– É tudo como um jogo de espelhos. Somos apenas reflexos.

      As terras de Juan Dalman em Palomas nunca foram localizadas. Passados 50 anos, apareceu por lá um jovem de feições indiáticas. No cemitério, diante do túmulo do argentino, teria dito estas palavras:

– Meu pai cumpriu o que lhe era destinado.


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