O homem que não sabia brincar

O homem que não sabia brincar

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Madame Suzanne, uma senhora que foi minha amiga em Paris, antes de perder-se em labirintos mentais dos quais nunca mais saiu, vivendo seus últimos tempos nas ruas e nas veredas do seu imaginário, me disse numa manhã de inverno gelado, quando eu me queixava do “eterno” cinza do céu da cidade, que as cores sempre estão nos olhos da gente. Eu sorri gentilmente. Ela era uma velhinha inteligente e culta que enchia seus vários pequenos apartamentos de livros, revistas e jornais recolhidos por toda parte. Percebeu minha indelicadeza e me corrigiu:

– O senhor acha que eu falei uma obviedade. Tente não ser óbvio.

– Longe de mim. Entendi o que eu disse...

– Quando eu era feliz, Monsieur Machado, amava até o cinza.

– Amava o cinza?

– Era uma cor como qualquer outra. Não me entristecia.

Leio sobre uma doença chamada “burnout”. Creio que é um novo nome para uma das tantas manifestações da velha e terrível ansiedade. Novos nomes para velhos padecimentos, novas dores para esta velha humanidade que sonha em salvar-se pelas máquinas, novas lágrimas para antigas tristezas, novos látegos para os lombos de sempre. Uma amiga terapeuta me ensinou há muito tempo que nós, pobres humanos, vivemos às voltas com o que nos falta, na depressão, e com o que sobra, na ansiedade. Um amigo me telefonou certa manhã e sem aviso prévio falou assim: “Vago dentro da noite como um fantasma miserável que se perdeu do cemitério. A firma fechou, a casa caiu, a vida parou, fiquei só”.

– Estás bêbado a esta hora?

– Nunca estive tão lúcido.

– Por que esse drama?

– Uma visão.

– Nada disso aconteceu contigo, ora.

– Mas poderá acontecer.

O medo predomina. Uma ficção científica antecipa o pesadelo. Tempos sombrios. “Burnout” é uma doença ocupacional, do trabalho. Parece se instalar quando a pessoa se sente esgotada, insatisfeita com o que faz. Conheci alguém que me dizia sofrer desse mal. Falava assim:

– Cansei. Não acredito mais no que faço. Tudo me parece uma farsa.

No começo, encontrava estratégias para se adaptar. Driblava o problema, mantinha as aparências. Depois, ficou ranzinza, reclamão, negativo. O curioso, segundo o que li, é que essa doença atinge pessoas obcecadas por trabalho, perfeccionistas, que, como se diz, não brincam em serviço. De repente, algo se quebra. O encanto acaba. A pessoa que conheci refugiava-se na ironia e num certo ceticismo:

– Parece de verdade, mas não é – afirmava sobre o que fazia.

Quando lhe diziam que precisava relaxar, encontrar alguma coisa para fazer que não estivesse relacionada com o trabalho, desdenhava:

– Se eu fizer esculturas, não será para matar o tempo. Se eu escrever, não será por passatempo. Se eu pintar, terá de ser de verdade.

Meu conhecido era um homem que não sabia brincar. Onde andará? Um dos paradoxos da nossa sociedade de consumo e de lazer é que com o aumento da expectativa de vida temos de reaprender a brincar para ocupar saudavelmente a chamada “terceira idade”. Brincar é algo muito sério. Armado apenas com minha sensibilidade de cronista, desconhecedor da química que atua no cérebro humano, percebo duas grandes tendências na atualidade: a dos que brincam por brincar e a dos que fazem do trabalho durante algum tempo o brinquedo das suas vidas. O “homo faber”, escravo da produção, está sempre a um passo de se tornar “homo demens”. A saúde certamente está em ser “homo ludens”. Como conseguir? Não creio que seja realmente uma questão de escolha.

Muitos se apaixonam pelo trabalho e quando percebem que perderam a capacidade de brincar já é tarde demais. Outros, alertados pelo próprio corpo ou por alguém, tentam voltar a brincar e não conseguem. A ruptura, o esgotamento, pode surgir com a pessoa ainda valorizando o seu estilo de vida. É um choque. Lutamos a cada dia para manter o nosso mundo encantado. Não é fácil. Somos educados para o trabalho. Aprendemos a correr atrás de metas. Sempre nos definimos por nossa categoria profissional. Em qualquer situação, seja num hotel ou numa reunião social, dizemos que somos jornalistas, médicos, engenheiros, advogados. Parecemos estar permanentemente respondendo a uma pesquisa do IBGE. Então, como que do nada, o organismo entra em pane. Satura.

O trabalho como brincadeira esconde uma armadilha: tudo é competição. Cada realização precisa ser avaliada. Não há relaxamento. A festa é o lugar privilegiado daquilo que o grande Georges Bataille chamava de “despesa improdutiva”. É preciso mais consumição e menos consumação. Temos de saber nos gastar sem buscar uma acumulação. Um dia perguntei à Madame Suzanne: por que guarda o que não lhe serve?

– Porque já não sei o que me serve.

Numa tarde muito cinza em que cheguei feliz ao nosso pequeno edifício, com seu pequeno jardim cuidado pela impassível e robusta loura Dora, no beco do Mont-Tonnerre, Madame Suzanne me flagrou:

– Como o cinza hoje lhe parece azul, Monsieur Machado!

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