O leite é de direita?

O leite é de direita?

Símbolos das ideologias em conflito

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      A esquerda nunca duvida da existência da direita que, volta e meia, diz agonizar, assim como o capitalismo. A direita adora sustentar que esse negócio de direita e esquerda não existe mais. Na sequência, bate sem parar nessa esquerda extinta como se ela estivesse bem viva e contra a qual se posiciona com argumentos tão contrários que podem ser chamados, pelos desatentos ou simplistas como eu, de valores de direita. Para essa direita o comunismo morreu, mas ela não se cansa de denunciar a ameaça desse fantasma insepulto. A direita acha que não se deve dar espaço para a esquerda, que não existiria mais, na mídia. A esquerda não vê razão para se deixar a direita falar. Ambas defendem a existência do contraditório desde que seja para silenciar o oponente.

      Como foi que o coronavírus se tornou o novo ponto de clivagem entre direita e esquerda? Para saber quem é de esquerda ou de direita basta perguntar o que a pessoa pensa da covid-19. Se o cara acha que há exagero da mídia na cobertura da pandemia pode-se cravar: de direita. Se argumenta que todo ano morrem muitas pessoas e que a crise econômica vai matar mais do que o vírus, não cabe dúvida: de direita. Se defende a cloroquina contra tudo e todos, especialmente contra a Organização Mundial da Saúde, não hesite: de direita. Se não vê necessidade de máscara todo tempo e duvida dos números divulgados pela mídia, de direita. Se ainda chama a covid-19 de gripezinha, extrema direita.

      Os conceitos de esquerda e direita evoluem com o tempo. A esquerda já foi muito conservadora em comportamento. Condenava (e ainda condena em alguns lugares), por exemplo, o homossexualismo. Cuba e a União Soviética prendiam gays. A esquerda atual, moderna, pós-moderna, hipermoderna, abraça as “minorias”. A esquerda stalinista queria produção e não se importava com o meio ambiente. O esquerdismo renovado é ambientalista. A esquerda tradicional via na democracia dita formal instrumento para chegar ao poder e tomar conta do aparato institucional. Valia tudo. Até golpe. A direita do século XXI adotou nova visão de mundo. Em vez tanques, votos. Em lugar de pé na porta, “lawfare” (guerra jurídica). Teclados e redes sociais substituem as baionetas. As prisões, no entanto, continuam sendo usadas em caso de extrema necessidade como ganhar uma eleição difícil ou intimidar.

      Os sinais ideológicos renovam-se. Não se resumem mais a classe social. Tomar leite em live para quem não sabe é tido como um dos novos símbolos do direitismo. Seria a apropriação de uma marca da extrema direita norte-americana, “All Right”, integrada por supremacistas brancos. Adriana Dias, doutora em antropologia social pela Unicamp, disse à revista Fórum que se trata de uma piscada de olho para o pior: “O leite é o tempo todo referência neonazi. Tomar branco, se tornar branco”. Segunda ela, “nacionalistas brancos fazem manifestações bebendo leite para chamar a atenção para um traço genético conhecido por ser mais comum em pessoas brancas do que em outros – a capacidade de digerir lactose quando adultos. É uma tentativa racista para se embasar em ‘ciência’ para diferenciar e justificar a ‘raça branca’”.

Quentin Tarantino, em “Bastardos Inglórios” (2009), apresenta o comandante da SS Hans Landa tomando um copo de leite antes de começar o interrogatório do camponês Lapadite e da execução de uma família judia. Isadora Dutra, doutora em teoria da literatura e professora no Centro Universitário Campos de Andrade, em Curitiba, num artigo intitulado “Os três copos de leite mais perigosos do cinema”, mostra que em Tarantino, Stanley Kubrick (“Laranja mecânica”, 1971) e Alfred Hitchcock (“Suspeita”, 1941) o copo de leite índica violência: “Nos três filmes citados, o copo de leite funciona na narrativa como um elemento de tensão. Em Hitchcock, o copo de leite assume, inclusive, o papel de arma do crime do ponto de vista da suspeita da protagonista. Em Kubrick e Tarantino, o objeto tem relação com os desdobramentos violentos das cenas: no primeiro, o copo de leite é instrumento da violência já que “o deixa pronto” para agir, nas palavras do personagem narrador; no segundo, o copo de leite adia o desenrolar da ação, intensificando a tensão da cena, e, a partir daí, funciona como índice de perigo e violência. O copo de leite está, portanto, no cerne do suspense, associado a momentos de grande tensão ou violência”. Será que os novos bebedores de leite ao vivo nas redes sociais sabem de tudo isso?

Um senhor tem bebido leite em lives. Mas acho que o cinema não é a praia dele. Conhecerá a simbologia internacional da extrema direita? Ou será que os seus ideólogos estão lhe servindo leite envenenado? Até o leite perdeu a inocência. Nada mais é o que parece. Tempos sombrios.

Para saber se o sujeito é de direita ou de esquerda criou-se um teste rápido de eficácia absoluta. Basta encarar e perguntar assim:

– Contra ou a favor da cloroquina?

      Outro teste de aplicação simples é o que pergunta:

– Prefere vinho ou leite em lives?


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