O ponto de vista de um boi

O ponto de vista de um boi

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Ponto de vista

 

      Toda história tem um ponto de vista.

Depende de quem a narra.

O britânico Ian McEwan, que será palestrante do Fronteiras do Pensamento, tem como narrador do seu último livro, Enclausurado, um feto. Quem seria o narrador adequado para contar a história de Palomas? Candoca, o ingênuo, Guma, o oráculo, Nésia, a bruxa, um cavalo, um burro velho, um galo cansado de guerra, eu ou um boi?

Cada um desses narradores produziria uma historia diferente, singular.

Tomemos o ponto de vista do boi. Eis o relato.  Palomas é uma tirania. Tudo é controlado pelos chamados seres humanos, que são predadores cruéis, obcecados, fanáticos e maus. Escravizam as demais espécies. Domam os cavalos com violência e os transformam em suas montarias. Criam cachorros para servir-lhes como mão-de-obra no campo e como cães de guarda. Adestram pares da minha raça para arar a terra e puxar carreta. É trabalho pesado, estafante, sem qualquer recompensa. São egoístas. Só pensam neles mesmos. A vida de um boi é um calvário sem fim. Quando somos bezerros, os humanos tomam parte do leite das nossas mães. Quando somos jovens adultos, somos castrados. É assim que nos tornamos bois. Que nome horrível. Uma tristeza.

O pior de tudo é que os palomenses são carnívoros. Só pensam em nos devorar. Por qualquer coisa, sacrificam um de nós e, em rituais hediondos e grosseiros, comem nossos pedaços assados e salpicados com o que chamam de salmoura. Comem-nos até adoecer. Tenho amigos que vivem angustiados com a morte. Sou um boi velho. Trabalhei duro para meus senhores. Não me matarão. Por ter sido escravo a vida inteira, formando dupla com um parceiro que morreu estafado, conheço a história de Palomas com quem conhece cada passo dado numa lavoura.

Quando meu livro sair, não sobrará uma reputação para contar história em Palomas. Conheço os segredos de cada um. Ouvi dizer que o mesmo acontece por toda parte, exceto num lugar chamado Índia, onde somos sagrados. Os humanos são os seres mais competitivos que existem. Possuem uma estranha concepção de tempo, que dividem em três partes: passado, presente e futuro. Por causa disso, vivem mal, sempre deslocados, assombrados pelo que já se foi e com medo do que virá. Quase não curtem a natureza. Só querem explorá-la. Um horror.

Chocante entre os humanos é a hipocrisia. São monogâmicos. Mas traem seus parceiros a torto e a direito. É algo pouco inteligente como sistema de organização sexual, pois provoca muito sofrimento. Quanta infidelidade eu vi neste meus longos anos de vida: atrás do galpão, no mato, no meio do milharal, à beira da sanga, na escola, no curral... Cala-te, boca. Por que os humanos são assim tão gananciosos? Amam poder e riqueza. Nós, bois, não precisamos de quase nada disso. É claro que os humanos acham que somos um tanto bobos.

Tenho muito a contar.

Quero publicar, no mínimo, um tetralogia.

Poderia falar dias e dias, por exemplo, sobre a poluição assassina dos solos. Vou parar, porém, aqui por hoje. Se eu continuar nesta linha, corro o risco de ser atacado por esses estranhos humanos:

– Olha, o especismo, Boi.

– Chega de vitimização, cara, vai.

Essas coisas. No momento, tenho ruminado minhas preocupações com Gilmar Mendes. Eu me pergunto:

– É ignorância ou maldade o que ele diz?

Não sei. Meu medo é o efeito manada. Um sujeito assim atrai um rebanho.

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