O que tenho visto na vida?

O que tenho visto na vida?

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A melodia e a inspiração são do poema e da canção. A intervenção simplificadora é minha. Tenho visto muita coisa nesta vida menos a felicidade. Não a felicidade pessoal, que, como todo mundo, experimento às vezes, mas a felicidade social, essa utopia imperfeita capaz de produzir paz e esperança em tempos de incerteza e “sombras na correnteza”. Tenho visto juiz com casa própria ir à justiça pedir auxílio-moradia, que a esposa, também juíza, já tem, ou o contrário, enquanto milhões chafurdam na lama, moram em barracos, acordam com o quarto alagado, veem as crianças com os pés no esgoto, dormem nas ruas. Tenho visto gente ser expulsa de prédios públicos abandonados por magistrados com casa na praia, na montanha, no campo, para alugar e auxílio-moradia.

Tenho visto muito coisa nesta vida menos a coerência.

Tenho visto a corte constitucional descumprir a Constituição num vaivém de serviço à la carte, ora vale, ora não vale, malmequer, bem-me-quer, este sim, este não, este mora no meu coração, este eu solto, este eu prendo como ladrão. Tenho visto o texto ser torturado para dizer o que não diz e o guardião da carta violá-la à luz dos holofotes em nome da sua liberdade de interpretá-la. Tenho visto o banqueiro receber ajuda para não quebrar e o miserável ser condenado a pagar juros sobre juros. Tenho visto a mão estendida ser ignorada e a mão que esbofeteia ser beijada com reverência oficial.

O que tenho visto nestes anos em que o meu cabelo se cobre de neve num país tropical e o coração queima como as velas de um navio incendiado pelos piratas de uma época sem lei?

Tenho visto a democracia ser ameaçada por extremistas de dois campos igualmente ensandecidos. Tenho visto um país bizarro no qual os partidos que têm socialdemocracia no nome são de direita e as políticas socialdemocratas, aparentadas com aquelas praticadas em democracias sólidas como as da França, da Alemanha ou da Suécia, são rotuladas de comunistas. Tenho visto a luz tremular na repetição dos discursos e tudo se perder no imenso vão entre a teoria e a prática.

O tempo passa e a história não passa ou volta como se fosse um pesadelo seriado. Tenho visto a corrupção ser combatida por corruptos, a honestidade ser louvada por desonestos, a liberdade ser defendida por quem sonha com a volta da ditadura, outra ditadura ser idealizada temporariamente por alguns que ainda sonham com uma igualdade à moda antiga e tudo se confundir numa convulsão de tanta luz, tanta teoria, tanta especulação, tanta violência e tanto escuro. Tenho visto a política ser desmoralizada diariamente por políticos e a reforma necessária não ser feita por ser política e, portanto, depender da vontade, dita política, dos políticos que não a querem. Tenho visto o legislador de ontem negar hoje a sua legislação quando ela se volta contra os seus e ameaça dizimar suas hostes afundadas na racionalização, nos interesses pessoais e nas ilusões partidárias.

Sim, tenho visto tanta coisa e compreendido tão pouco. Tenho visto o indignado silenciar quando os mesmos fatos já não atingem seus inimigos, mas enlameiam os seus amigos. Tenho visto político tentar proibir pesquisa, depois de a mídia disseminar verdades desabonadoras sobre seu passado, e ter a surpresa de se achar em primeiro lugar, pois não se espera dele as virtudes cobradas dos outros, mas somente que seja o que é, aquele que encarna a recusa visceral do outro.

Tenho visto nomeação para ministério de quem descumpre as metas básicas da pasta e ex-presidiário, condenado por corrupção, ser conselheiro do rei. Ou ser o rei. Correm os meus dedos curtos em frases longas que eu invento, mas nada do que escrevo já me dá satisfação.

Tenho visto a violência dizimar inocentes todo dia e as prisões se encherem de aprendizes de crimes maiores em escolas ou, como disse alguém, quartéis das organizações criminosas. Tenho visto nas ruas um senhor entrado nos anos dizer a quem aceita ouvi-lo:

– Preciso muito vender esta rapadura

Ah, eu só queria que este país cumprisse o seu ideal e que se tornasse uma imensa Suécia. Uma Suécia tropical em ritmo de samba e funk. Mas me contento com “um lugar de mato verde/pra plantar e pra colher” ou, sem misturar imaginários e letras, “ter do mato um gosto de framboesa/pra correr entre os canteiros/e esconder minha tristeza”. Essa tristeza quem me vem como que do nada, esse nada que é tudo, esse olhar pela janela, essa caminhada na rua apinhada de gente sem auxílio-moradia, sem padrinho, só compadre sem eira nem beira, sem aposentadoria complementar nem como complementar o mês que termina antes de fim mais ou menos pela metade.

“Tenho tido muita coisa”, é isso que diz o texto não adulterado, menos a prova de que o futuro será melhor. Não pode haver garantia? Tenho ouvido muita promessa em tom de certeza. Olho a multidão que passa e penso: é tanta gente simples, tanta gente esquisitamente comum, tanta gente suando por uns cobres, tantos acreditando contra todas as evidências, enquanto tão pouca gente, pendurada nos cabides dos seus privilégios, olha para baixo e recita solene e soberbamente:

– Fizemos por merecer.

 




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