O sangue derramado de Rafael

O sangue derramado de Rafael

Gênio da Renascença teria morrido de pneumonia

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      Rafael Sanzio foi um gênio da Renascença. Mas não teria sabido comunicar aos médicos os sintomas da doença que o acometeu e matou em duas semanas, aos 37 anos de idade, há parcos 500 anos, quando o Brasil ainda era essencialmente dos seus nativos. Giorgio Vasari, que eu lia aos domingos na biblioteca do Centro Pompidou, em Paris, para fugir do frio e do cinza chapado do inverno, conta, em “A vida dos artistas”, que Rafael teve uma “febre violenta” depois de uma noite de sexo. Acharam que era sífilis. Aplicaram-lhe sangria. Estudiosos atuais da Universidade de Milão-Biccoca afirmam que era pneumonia. Li sobre isso no UOL. Fui conferir no Guardian.

O que me interessou?

      Como todo mundo, admiro as madonas de Rafael e a suavidade do seu famoso “Autorretrato”. A sua obra que mais me impressionou foi “Transfiguração”, de 1520, o seu último trabalho, uma encomenda do cardeal Júlio de Médici. Eu era um doutorando com pouco dinheiro. Fomos de ônibus de Paris para a Itália em busca das obras-primas dos renascentistas. Nunca uma viagem cansativa foi tão gratificante. Mas o que me interessou nesta história de doença tratada com procedimento errado (não se usava, segundo li, sangria para doenças pulmonares) foi o silêncio do pintor. Por que ele não se esmerou em explicar o que estava sentindo? Pelo que se sabe ele teve tempo e forças até para organizar o seu testamento nos poucos dias em que esteve doente.

      Cinco séculos atrás, 37 anos de idade era uma boa rodagem. Estaria o pintor cansado da vida? Pelas festas que fazia, parece que não. Ou se esbaldava por estar farto de tudo? Outra hipótese é de que simplesmente esbarrou nos limites da medicina da época. O coronavírus está aí para provar que quanto mais avançamos, e nunca paramos de fazer isso, mais nos deparamos com limitações. Estamos vivendo a maior disputa da ciência com um inimigo da humanidade. Se a ciência vencer, em tempo recorde, teremos uma nova “transfiguração”. O que terá dito Rafael aos médicos que cuidaram dele? Como terá vivido as experiências das sangrias? O que terá pensado da cor do seu sangue derramado? Uso todos esses termos obviamente de maneira metafórica. No fundo, pergunto: como era ser um gênio e morrer aos 37 anos em 1520? Ele faleceu no dia do seu aniversário de nascimento, 6 de abril. Fechou o ciclo com uma pincelada improvável. Deixou um legado imortal.

      Chamado de “príncipe dos pintores”, Rafael brilhou em vida. Andou pelas cidades mais culturais do seu mundo. Talvez eu tenha realmente me interessado pela notícia sobre a suposta verdadeira doença de Rafael por saber de cor uma frase atribuída a ele, que se pode encontrar na internet: “O tempo é um bandido vingativo que vem roubar a beleza de nossos antigos eus". Terá o homem coberto de glórias sentido a chegada desse meliante cujos malfeitos ninguém consegue conter? Salvo, quem sabe, a arte. Pintado, Rafael exibe para sempre uma beleza estranha, altiva, juvenil. Intemporal. A sua última frase, infelizmente, teria sido “não consigo respirar”. Ou algo assim.

 


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