O trabalho nos Contos Fluminenses de Machado de Assis

O trabalho nos Contos Fluminenses de Machado de Assis

Um estudo sobre a ociosidade das classes abastadas no século XIX

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Machado de Assis trabalhou muito para construir a sua prodigiosa literatura, certamente a mais brilhante da nossa história. O trabalho, porém, não tem grande espaço em muitas das suas narrativas. Não é personagem. Nem sequer cenário. Os densos seres que povoam os contos e romances do autor flutuam numa rede complexa de relações assentadas sobre uma estrutura implacável: a escravidão. Nos “Contos fluminenses”, coletânea de textos, na quase totalidade publicados no Jornal das Famílias, o trabalho aparece em alusões que jamais se avolumam. A maior parte das ambientações acontece em saraus nas casas das pessoas, que passam o tempo das noites, mas também de muitos dias, visitando-se. Em “Miss Dollar”, que abre o livro, o protagonista, salvo se a cadelinha Miss Dollar tiver o papel principal, é um médico de 34 anos que inventou um elixir e passou a exercer a medicina “como amador”: “Tinha quanto bastava para si e a família”, formada por seus muitos cães.

      Mendonça terá como única labuta cortejar Margarida, uma vela viúva rica, cujo irmão, Jorge, só se ocupa em dilapidar o patrimônio da mãe, “gastando duzentos mil réis por mês, sem os ganhar, graças à magnanimidade da mãe”. Andrade, amigo de Mendonça, ao final, “mete-se na diplomacia”, que evidentemente não terá expedientes descritos.  Luiz Soares, protagonista cujo nome dá título ao segundo conto do volume, viu a sua fortuna desaparecer justamente por nunca trabalhar. A partir daí trata se de reaproximar de um tio, que desprezava, para encontrar meios de continuar bem vivendo. O tio, Major Villela, estava velho e adoentado. Tinha fortuna. Se havia trabalhado, isso era passado. Com ele vivia a sobrinha Adelaide, cujo amor Luiz Soares havia rejeitado.

      Para ganhar a estima do tio, Suarez aceita um emprego público. Sacrifica-se para retomar a vida de dissipação. O trabalho é um fardo.

A sobrinha do major, Adelaide, recebe subitamente a notícia de uma herança deixada pelo pai aos cuidados de Anselmo, um fazendeiro rico cuja vida laboral só entediaria o leitor. O pai deixa a fortuna para a filha com a condição de que, se estiver solteira, case-se com o primo Luiz Soares, que vê na sorte grande a enorme chance de nunca mais trabalhar. A moça, porém, vinga-se rejeitando o homem que ama. A sua desforra culmina com uma fórmula que antecipa o Machado de Assis irônico do realismo: “Trezentos contos! É muito dinheiro para comprar um miserável”. Era o cabedal herdado pela beldade. Ela queria amor. Soares só pretendia escapar de uma vida de empregos e obrigações. Pobre para sempre e obrigado a trabalhar para viver, o malandro preferiu o suicídio. Os seus amigos continuaram a fazer o que sabiam: festa.

      Em “A mulher de preto”, um médico e um deputado tornam-se amigos e muito se visitam. Estevão estudou muito para se formar. Mas não o vemos clinicando, embora o faça. A história é romântica. O médico apaixona-se por uma linda e misteriosa mulher, que se descobrirá ser a esposa do deputado rejeitada pelo ciúme doentio do marido. Estevão “morava só; tinha um escravo, da mesma idade que ele, e cria da casa do pai, mais irmão do que escravo, na dedicação e no afeto”. Certamente o escravo não era irmão na execução dos trabalhos não descritos da casa. Se os personagens pouco trabalham a culpa não é do escritor. Ele pinta certamente a sociedade da época focando-se no seu “andar de cima”.

      Em “O segredo de Augusta”, a personagem principal gasta os tubos. O marido, o risonho Vasconcelos, tem fortuna e amantes. Não perde tempo trabalhando. Acorda tarde demais para se ocupar com burocracias: “Possuía uma boa fortuna e não trabalhava, isto é, trabalhava muito na destruição da referida fortuna, obra em que sua mulher colaborava conscientemente”. Quando vê o dinheiro sumir, Vasconcelos decide casar a filha adolescente, contra a vontade da mulher, com um amigo de biografia equivalente a sua, um descansado como ele, na esperança de salvar seu estilo de vida e proteger sua incapacidade de produzir.

O amigo tivera a mesma ideia: casar-se com a menina de 15 anos para desfrutar do dinheiro do pai dela e salvar-se da miséria ou do trabalho como solução extrema e insuportável de tragar. O narrador situa o leitor com poucas frases: “O novo personagem, o Gomes tão desejado e tão escondido, representava ter cerca de trinta anos. Ele, Vasconcelos e Baptista eram a trindade do prazer e da dissipação”. Quando algum personagem pensa em trabalhar já se sabe: quer enganar alguém. Sabedor de que a menina já não era rica, graças ao comportamento do pai, Gomes finge ainda o casamento. Dispõe-se, pelo pretenso amor, a praticar um gigantesco sacrifício: “Pretendo ir ao governo e pedir um lugar qualquer, se é que ainda me lembro do que aprendi na escola”. Era balela. Dessas mãos não sairia trabalho. Gomes, ao final da história, arruinado, pergunta-se: “Onde acharei eu uma herdeira que me queira por marido?” Um romantismo bastante realista. O único que parecia trabalhar nessa história era o credor: cabia-lhe correr atrás dos devedores dia e noite para não se fazer enrolar.

       Assim vai. “Em confissões de uma viúva moça”, uma mulher retira-se para Petrópolis e e conta em cartas a uma amiga a sua história: “Era no tempo do meu marido”. A Corte fervilhava. Ia-se ao teatro Lírico. Um homem começa s escrever uma carta sedutora à protagonista. Em seguida, aparece na casa dela como convidado do marido. Era Emílio, “filho de pais opulentos, que recebera uma esmerada educação na Europa, onde não houve um só recanto que não visitasse”. Viajava e seduzia. Eis tudo. Infiltrado na casa do homem a ser traído, Emílio “trabalha” duramente para atingir o seu fim: conquistar a anfitriã. Era só questão de tempo. Em resumo, Emílio era um crápula que nada tinha a fazer na vida. O seu passatempo era conquistar mulheres entediadas e relegadas por maridos ricos, senhores de si e mais interessados em amantes ou jogatinas.

      O marido fez o favor de adoecer e morrer. A bela fica livre. O sedutor perde o interesse pelo jogo. O trabalho, que não pratica, surge como uma desculpa para fugir: “Emilio veio em pessoa. Asseverou-me que, se ia partir, era por negócio de pouco tempo, mas que voltaria logo”. Não voltaria. Não era homem afeito ao casamento. Nem ao trabalho. Essas tramas inverossímeis revelam paradoxalmente muito da realidade da época: trabalho não era coisa valorizada por homem branco bem-sucedido. Podia ser necessário para fazer fortuna. Alcançado o objetivo, era desnecessário ou desprezível. O vencedor só podia viver de rendas.

      Em “Linha reta e linha curva”, Azevedo experimenta a felicidade com sua esposa numa lua de mel estendida em Petrópolis. Vivem de amor: “Deu-lhe a fortuna um emprego suave: não fazer nada. Possui um diploma de bacharel em direito; mas esse diploma nunca lhe serviu; existe guardado no fundo da lata clássica em que o trouxe da faculdade de São Paulo. De quando em quando Azevedo faz uma visita ao diploma, aliás ganho legitimamente, mas é para não o ver mais senão daí a longo tempo. Não é um diploma, é uma relíquia”. Certificado de uma vida ociosa. Então entram na história Tito, velho amigo de Azevedo, e Emília, uma bela e rica viúva de dois maridos. Surge também, apaixonado por Emília, um velho de cinquenta anos no qual se via “como que uma ruína do passado, reconstruída por mãos modernas”. Ninguém trabalha. Dedicam-se integralmente às visitações, aos passeios e aos jogos do amor, que podem ser laboriosos, complexos, cheios de idas e vindas e de expedientes diários ou quase. Um pouco mais e teriam registro de ponto.

      Hospedado na casa de Azevedo, Tito flanava: “Tito, como temos visto até aqui, estava no terreno do primeiro dia. Passeava, lia, conversava e parecia inteiramente alheio aos planos que se travavam em torno dele”. Vivia. Folgadamente. Ao final, o amor triunfa. Tito e Emília, que já se conheciam, ficam juntos. A vida está resolvida. Um pouco antes do desfecho Adelaide disse: “Escreva isto e dirão que é um romance”. Tito respondera sem hesitar: “A vida não é outra coisa”. Imaginário romântico? Imaginário do romantismo? Folhetim açucarado? Ou paradoxalmente descrição involuntária de uma realidade subjacente?

      Esses “Contos fluminenses” se encerram com “Frei Simão”, história de um homem que se torna religioso num claustro por decepção amorosa. Jovem, Simão trabalhava no escritório do pai. O narrador concede uma linha a esse labor: “Uma tarde, como estivesse o rapaz a adiantar a escrituração do livro mestre, entrou no escritório o pai com ar grave e risonho ao mesmo tempo, e disse ao filho que largasse o trabalho e o ouvisse”. Ia enviar o filho para longe de modo a que não quisesse se casar com a bela órfã que vivia com eles. O pai pretendia uni-lo a uma rica herdeira. Quando um homem rico ainda trabalhava, como o pai de Simão, já era por avareza. Este conto não tem final feliz. Não importa. Em todas essas narrativas focadas no amor, o ócio desempenha um papel central. O amor entre pobres ou escravos não merecia a mesma atenção.

 

Trabalho na ordem escravocrata

 

Trabalho, na época de Machado de Assis, ainda não era coisa de branco, salvo de branco pobre ou na acumulação primitiva do seu capital. A escravidão contaminava as mentalidades. Rui Barbosa sabia disso e denunciava o saque ao trabalho alheio: “É no terreno da moralidade e da honestidade que pretendem liquidar este ajuste de contas. Mas então onde estaria, por excelência, a imoralidade, a improbidade, senão no cativeiro? Não será ele a espoliação suprema, o roubo dos roubos, roubo da honra, roubo da liberdade, roubo da propriedade do indivíduo sobre a sua inteligência, o seu suor e o fruto do seu trabalho? Dizem que a geração de hoje está inocente: trata-se apenas de um legado dos seus maiores, em cuja origem ela não conspurcou as mãos. Mas o esbulho, perpetrado pelos ascendentes, lava-se do seu vilipêndio nas mãos dos filhos, interessados em explorá-lo?” É de legado que ainda se trata: o legado do desprezo pelo trabalho manual.

Roberto Schwarz, considerado um dos maiores especialistas na obra de Machado de Assis, anotou num dos seus textos: “Se grande parte do trabalho era exercido pelos escravos, restava aos homens livres trabalhos mal remunerados e instáveis”. E aos ricos o ócio e os embates amorosos. Nas obras da fase realista de Machado de Assis o trabalho ganha outra dimensão? Não parece. A lente de Machado tem outro foco. Na crônica que publicou em 19 de maio de 1888, seis dias depois da abolição da escravatura, Machado de Assis trabalhou com a sua afiada ironia. O amo fala da libertação do seu escravo: “Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos. Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo de filho do diabo; cousas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre”. Com esse feito e um artigo generoso plantado na imprensa, o ex-escravista planejava eleger-se deputado.

A escravidão arrastou-se até 1888, segundo Perdigão Malheiro, autor de um estudo exaustivo, ainda na vigência da ordem escravocrata, sobre o tema, por uma associação entre inércia e horror ao trabalho:  “Adiada sempre e indefinidamente a questão ou a solução a pretexto de inoportunidade, perigo da ordem pública, da paz das famílias, da ordem econômica e da fortuna pública e privada! Dormiu-se assim o sono da indiferença sobre o vulcão, sobre o abismo. De temor de encará-lo, embriagavam-se com as insidiosas ores que o encobriam, o produto do trabalho escravo”. Os brancos não se imaginavam sem seus escravos.

Estrela literária da segunda metade do século XIX e político influente, tendo votado contra a Lei do Ventre Livre, José de Alencar usava toda a sua poderosa retórica para tentar manter os negros no cativeiro e garantir os ganhos dos seus donos sem que tivessem de pegar no pesado: “Vós, os propagandistas, os emancipadores a todo o transe, não passais de emissários da revolução, de apóstolos da anarquia. Os retrógrados sois vós, que pretendeis recuar o progresso do país, ferindo-o no coração, matando a sua primeira indústria, a lavoura”. Nesse terreno, a prosa de José de Alencar nada tinha de poética: “Vós quereis a emancipação como uma vã ostentação. Sacrificai os interesses máximos da pátria a veleidades de glória. Entendeis que libertar é unicamente subtrair ao cativeiro e não vos lembrais de que a liberdade concedida a essas massas brutas é um dom funesto; é o fogo sagrado entregue ao ímpeto, ao arrojo de um novo e selvagem Prometeu!”

Machado de Assis retomaria a questão do trabalho escravo em seu último livro, “Memorial de Aires”, de 1908. O narrador, que parece ser um alter ego do autor, comemora discretamente o fim da escravidão: “Enfim, lei. Nunca fui, nem o cargo me consentia ser, propagandista da abolição, confesso que senti grande prazer quando soube da votação final do Senado e da sanção da regente. Estava na rua do Ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria, geral”. Seria uma justificação?

Há, porém, ambiguidades nessa narrativa melancólica. O livro é apresentado como um diário. Na anotação de 10 de agosto de 1888, o narrador escreve: “Fidélia chega da Paraíba do Sul no dia 15 ou 16. Parece que os libertos vão ficar tristes; sabendo que ela transfere a fazenda, pediram-lhe que não, que a não vendesse, ou que os trouxesse a todos consigo. Eis aí o que é ser formosa e ter o dom de cativar. Desse outro cativeiro não há cartas nem leis que libertem; são vínculos perpétuos e divinos. Tinha graça vê-la chegar à Corte com os libertos atrás de si, e para quê, e como sustentá-los? Custou-lhe muito fazer entender aos pobres sujeitos que eles precisam trabalhar, e aqui não teria onde os empregar logo. Prometeu-lhes, sim, não os esquecer, e, caso não torne à roça, recomendá-los ao novo dono da propriedade”.

Os “pobres sujeitos”, os libertos, devem entender que “precisam trabalhar”? Logo eles! Volta e meia, a dialógica do “escravista de bom coração” e do escravo que “não pode viver sem seu amo” aparece sem dissimulação como um eco da época ou como uma pulga atrás de uma orelha que não pode coçar para não ferir. No tempo dos “contos fluminenses” tudo era mais simples: os negros trabalhavam, os brancos ricos viviam das suas rendas e dos seus dilemas de amor, os pobres submetiam-se à humilhação de uma labuta mal remunerada e os ricos que perdiam suas fortunas na doce vida da dissipação e do combate ao tédio da abundância sem esforço buscavam um casamento reparador, esperavam a herança de algum tio ou aceitavam um emprego nalgum ministério até a sorte virar. Em último caso, se só lhes restasse o trabalho, podiam até se matar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


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