Olhares cruzados

Olhares cruzados

Visões de mundo

publicidade

      Já notaram como nós, os velhos, paramos no meio de uma frase para olhar o vazio? Conta-se que num reino distante – essas histórias só fazem sentido se for num reino e se o reino for distante – um velho general ganhava as guerras. As suas vitórias, contudo, eram atribuídas aos conselhos e estratégias do seu jovem auxiliar. O velho general tratava ele mesmo de espelhar essa versão. O jovem beneficiado ficava, por vezes, constrangido, mas não se animava a contrariar o superior nem a recusar os elogios que, embora imerecidos, eram tão generosos.

      Um dia – nessas histórias sempre há um dia, aquele dia, nunca uma noite – um coronel de meia idade ousou interpelar o velho general:

– Por que o senhor aceita essa situação?

– Ora, ela é muito vantajosa. Quem acreditaria no poder de comando e na capacidade estratégica de um homem como eu, que adormece quando ouve longos e pomposos discursos e crê mais na experiência do que na teoria?

– Mas o seu orgulho não fica ferido?

– Orgulho é algo que fica bem até certa idade. Depois, vira sintoma.

      Os olhares, a partir de certo momento da vida, são sintomáticos. Nos primeiros anos, porém, são meramente instintivos. Outro dia – há sempre outro dia nessas histórias sem data –, acho que foi numa tarde de segunda-feira, eu estava falando sobre carros da minha juventude (Maverick, Variant, Corcel, Sinca, Dodge Dart, Opala) quando, repentinamente, parei, olhei o vazio, meio que perdi o fio da conversa, sorri e, finalmente, retomei o que dizia como se nada tivesse ocorrido.

– O senhor se perdeu? – perguntou meu aluno.

– Não. Quase me achei.

      O menino, muito educado, fingiu acreditar. Nossos olhares se cruzaram e vi, por um instante, nos olhos dele uma imagem do meu passado. Era aquela suave descrença que eu sentia quando alguém da minha admiração se desconectava para mergulhar nalgum mundo irrecuperável.

– A variante ômicron...

– Variante era um carro do meu tempo – eu disse.

      Ele riu. Em seguida, disse algo que me desconcertou:

– Ainda existe.

      Foi então que eu me perguntei por onde andei nesses anos todos que não notei mais qualquer Variant rodando por aí. Como nunca tentei aprender a dirigir, fui perdendo o interesse por automóveis, que passam por mim sem marcas nem identidade. Hoje, como uma tia minha, de saudosa memória, só faço diferença entre ônibus, caminhões e carros de passeio. Tenho a impressão de que todos os carros de agora se parecem, arredondados, bolhas flutuantes, enfim. Não presto atenção. Ah, já aviso, esse general da minha história não é o famoso Kutuzov, de “Guerra e paz” e da resistência à invasão de Napoleão. A Rússia não era um reino tão distante assim. Salvo para quem tentasse atingir o seu coração.

      O olhar entrega muito. É a voz da alma. Existem olhares no sentido figurado do termo. Esses são os mais reveladores. Confessam tudo.

P.S.: na foto, homenagem ao Caderno de Sábado

     


Mais Lidas

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895