Pátios e ruelas

Pátios e ruelas

Memória do cotidiano

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      Desde cedo, que é o nome dado ao tempo antes de entrarmos na ditadura do calendário, percebi que me perderia em devaneios sobre a essência da vida. Mais tarde, que é o nome dado ao tempo cronometrado por necessidades econômicas, aprendi que uns chamam essas reflexões de filosofia. Outros, de poesia. Para mim são apenas punhaladas. Cresci em pátios amarelados com manchas verdes de vegetação. A cada dia me interessavam mais os crepúsculos e os apitos dos trens do que a contagem das horas e dos poucos ganhos dos que nos cercavam. A primeira lembrança viva que tenho é a de uma janela batendo numa tarde de outono. Havia folhas de plátanos caídas e o chão parecia de ouro.

      Durante muito tempo, que é como rotulamos o intemporal, pensei que a vida se dividia entre o alvorecer e o cair da noite, tudo mais sendo um intervalo entre o renascimento dos pátios e a esperança de andar pelo mundo sem perder as raízes e sem esquecer a gente da minha rua. Fiquei sabendo que tudo se classifica. Há quem chame de crônica toda poesia cujas frases terminam ao final das linhas. Para não ferir sensibilidades nem me cortar no arame farpado dos campos privatizados me acostumei a não deixar palavras pelo caminho nem orações incompletas. Até que me cansei. Então me sentei à beira dos trilhos e contemplei um cair da tarde como se tomasse um longo banho de rio.

      Tenho no mais fundo de mim, esse lugar que por vezes vem à tona como uma criatura fantástica do fundo do mar, que cada um de nós passa os seus dias divagando enquanto declara o imposto de renda ou revisa as tarefas do dia, entre lembranças, invenções para arrancar o tempo da sua escravidão e conversas que nunca aconteceram nem acontecerão. Eu já me vi conversando com D. Pedro II sobre a abolição da escravatura. Ele estava doente na Itália e temia a reação dos cafeicultores do Rio de Janeiro. Pensei que eu estava louco. Em seguida, compreendi que era apenas um diálogo normal da imaginação ociosa. Nesse dia, de cuja data, essa ilusão contábil da passagem dos alvoreceres e dos crepúsculos, já não me lembrarei, o sol batia em pedras que luziam como mármore.

      Nos pátios da minha vida, de cujas saliências e recantos não esqueço, mesmo condenado a viver em andares de edifícios de onde não posso sentir o cheiro de terra molhada, colecionei palavras que ainda me despertam emoções. Dia desses, que é como nomeamos o esquecido que se infiltra em nossas lembranças esparsas, uma delas me chegou com o vento e o último rastro do sol: invernada. Por um momento, que é como designamos esses instantes eternos na fugacidade do espírito, me deixei transportar para campos que possivelmente nunca mais verei. Eram invernadas. Nalgumas, solitário, açoitado por ventanias, entortava-se o casebre do posteiro, o encarregado daquelas lonjuras e pastos onde, eu me dizia, viviam fantasmas, recordações e vidas suspensas no ar.

      Se houve pátios na minha vida onde deixei minha imaginação transbordar e derivar como meus passos de criança, existiram também ruelas que mais pareciam descansos do tempo. Nelas, nada acontecia, salvo a lenta evolução das sombras. Numa delas, Travessa Borges, as casas tinham a frieza altiva do mármore, o amarelado de antigos pátios, folhagens subindo pelas janelas e ouro salpicando o solo: o ouro dos reflexos do sol nos paralelepípedos, palavra que eu não pronunciava. Eu era aquele que se perderia no tempo em busca dos pátios iluminados. Talvez o leitor urbano, das grandes cidades, não tenha a medida da importância dos pátios na vida dos interioranos como eu. No meu tempo, que é como etiquetamos aquilo que possivelmente não tenha sido como lembramos, mas que se incrusta em nós como única realidade sentida, os pátios eram latifúndios que se perdiam no fundo de casas baixas.

      Ao sul do pátio onde passei meus melhores anos de infância, aqueles dos quais só me ficou a memória da brisa e do sol, além da imagem de um balanço quebrado entre dois cinamomos, começavam os campos que se perdiam no infinito oscilando por léguas, quase tocando o horizonte, um céu de um azul redundante ou coalhado de nuvens desenhadas por alguma mão trêmula apaixonada por animais. Vez ou outra, havia o rastro de um avião ou o colorido minúsculo de uma pandorga. No mais, que é como definimos o que sabemos e o especialmente o que não sabemos, tudo se refletia em águas frisadas, olhos semicerrados e sonhos. De outrora, esse tempo que não se apaga, eterno agora, convivo com rostos taciturnos à beira de fogos de chão, vultos atropelando a noite para antecipar a luz do dia, figuras híbridas, centauros, lobisomens, mulas sem cabeça, lavradores curvados sobre o solo triste.

      Há muito que não ouço o apito melancólico de um trem. Nem observo a alegria suave de um alvorecer. Só me restam os crepúsculos, os quais, não raro, salpicam sangue ou ouro no céu como se fossem pátios amarelados que me apunhalam a alma, o coração, a memória esmaecida. Então, mesmo sem vento, na solidão das lembranças, bate uma janela.

     

     


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