Pai zeloso

Pai zeloso

Queiroz ficava com o salário da filha

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      Com o devido respeito a Tom Jobim, começo parafraseando a sua famosa sacada: compreender a cultura brasileira não é para diletantes nem para desocupados. O brilhante Roberto DaMatta vem estudando nossos fundamentos culturais há décadas e ainda tem trabalho pela frente. Segundo Flávio Bolsonaro, Queiroz sempre foi um cara “correto, trabalhador”, capaz de dar “o sangue por aquilo que acredita”. E no que ele acredita? Em valores (cifras?) tradicionais. Por exemplo, administrar o salário da filha. No passado, pais recebiam o dinheiro ganho pelos filhos homens, em geral, para ajudar nas despesas da casa. Eram famílias grandes e com sérias dificuldades financeiras. Além disso, predominava um forte patriarcalismo. O pai era o chefe da família. Todos lhe deviam respeito, obediência e até o “ordenado”.

      A filha do Queiroz, contudo, não parecia fazer o gênero menina submissa. Moderna, vivendo no Rio de Janeiro, personal trainer, a moça tem tudo de uma típica garota carioca do século XXI. Suingue, sangue bom? Aí é que pega. Durante 22 meses consecutivos, quando estava lotada no gabinete de Jair Bolsonaro, ou o gabinete é que estava lotado e ela não precisava aparecer por lá, a obediente Nat repassou grande parte do seu salário para o seu zeloso pai. Era rotina: recebia, transferia a grana para a sua conta no Itaú e repassava a maior parte para o paizinho. Ficava, claro, com um dinheirinho para ela. Pobre menina, tão querida. Teria dificuldade para gerir seus ganhos? Ou confiava no faro de investidor do ativíssimo Queiroz?

      As aparências enganam. As fotos de Nat mostram uma guria cheia de confiança em si. Seria interessante fazer uma pesquisa: quantas filhas transferem seus salários para os pais neste terceiro milênio? Daria para fazer até um recorte por profissão: quantas jovens que trabalham com preparação física entregam seus proventos para gestão paterna? Por quer razão se faz isso? Talvez caiba até uma pergunta com tom psicológico duvidoso: é normal isso? O advogado Paulo Catta Pretta ofereceu uma explicação sociológica altamente convincente para o fenômeno: “Os depósitos realizados por Nathalia em favor de Fabrício Queiroz cumpriam a regra de centralização das despesas familiares na figura do pai, não tendo, pois, nenhuma relação com suposta rachadinha”. Impressionante. Os antropólogos precisam estudar essa persistência do patriarcalismo como traço cultural no Brasil moderno.

      O patriarcalismo, que costuma se associar ao machismo num dueto secular, talvez não seja tão incomum neste ano da peste de 2020. O ministro João Otávio de Noronha, presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao conceder prisão domiciliar para a mulher do mesmo Queiroz, que estava foragida, sustentou a sua decisão com este argumento levemente anacrônico e caridoso: "Por ser presumir que sua presença ao lado dele seja recomendável para lhe dispensar as atenções necessárias". Pai zeloso, filha disciplinada e subserviente, advogado que não balbucia ao afirmar que o passado se insinua no presente, juiz prestimoso. Eis uma imagem do Brasil que a mídia não tem valorizado.

 

 

 


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