Papo canino

Papo canino

Conversa na Redenção

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      Sempre de máscara, caminho na Parque da Redenção. Virou quintal. Só de ver as árvores quase me emociono. Gravetos no chão me fascinam. Lembram, de algum modo, os tempos da normalidade. Não sei a razão. Ouço conversas. Outro dia, ouvi o papo de dois cachorros, um vira-lata caramelo e um basset com cara de moleque e orelhas de aviador. Eu estava descansando num banco. Minhas caminhadas buscam mais a saúde mental do que a física. Os cachorros iam e viam no maior lero-lero.

– Não aguento mais essa pandemia – disse o vira-lata.

– Pra mim não mudou muito – respondeu o basset.

– É que lá em casa tem pouco espaço.

– Vida de cachorro de apartamento já é isolada. Não fosse essa vinda diária à Redenção, não sei como aguentaria tanto tempo parado.

      O vira-lata fez cara de zombaria. Viu passar um grupo, correu até o gramado e voltou com ar de quem ia fazer uma grande confissão:

– Sabe o que mais me irrita?

– Conta.

– Gente sem máscara.

      O basset rosnou. Aproximou-se mais do vira-lata. Havia química entre eles. Outros cachorros corriam como crianças. Eles refletiam.

– Não saio de casa se a minha dona não põe a máscara. Pra mim, na boa, andar sem máscara é burrice. Se minha dona para pra conversar com alguém sem máscara, eu me mando. Se estiver na guia, começo a latir.

– Beleza. Precisamos fazer a nossa parte – concordou o caramelo.

– E não passar pano pra quem faz tudo errado.

– Será que se acham super-homens?

      Tirei o chapéu para os dois. Que consciência. O caramelo queria falar. Parecia muito informado sobre o assunto. Tinha opinião firme.

– Se tem uma coisa que me irrita é negacionista – disse.

– Imagina! Tem cara que não acredita em vacina.

– O que seria de nós se não nos vacinassem direitinho?

– Pois é. Aí quando chega a vez deles, não acreditam.

      Deram uma volta. Fiquei esperando o retorno. As donas deles eram duas moças simpáticas que não descreverei por falta de espaço. Estavam sentadas na grama. Os cães retornaram. O basset mudou de assunto.

– Minha dona viu a live da Maria Bethânia.

– Sublime – opinou o vira-lata.

– Também achei. Sou eclético. Vou da Anita à Bethânia.

– A live da Bethânia foi perfeita, mas tinha uma cortina amassada.

– Não vi. Gostei do que ela falou.

– Um amigo da minha dona disse que ela é comunista.

      Sentaram-se diante de mim. Pareciam me examinar com alguma desconfiança. Dei uma arrumada na máscara. O basset não se aguentou.

– Esquisito esse cara, não?

– Pelo menos está sempre de máscara.

     
 

 

 

 


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