Paris me faz lembrar de Paris

Paris me faz lembrar de Paris

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À sombra da torre

 

      Quando a inglesa se jogou pela janela do terceiro andar, com uma faca cravada na barriga, o edifício balançou. Uma fronteira havia sido ultrapassada. Nunca se vira nada parecido. A loura do térreo viu de peito aberto – que peitos enormes – suas plantas destruídas. O pintor do último andar abriu a janela e ficou observando antes de arriscar a pincelada seguinte. Ou ele já tinha morrido? A tunisiana trancou os filhos, um guri e uma guria magros e compridos com dois bambus, depois de soltar um sonoro “Alá nos proteja”, de acordo com a tradução posterior feita por Madame Salope, termo altamente pejorativo, safada, usado pelos seus inimigos, o edifício inteiro, salvo nós, os brasileiros, vizinhos do pintor e da iugoslava, que nos servia café turco e se queixava no infinitivo: “França me adoecer todo tempo”.

Estava lá o corpo estendido no chão, a ambulância no beco, a multidão acotovelada, o argentino com cara de Gardel soltando um palavrão, “carajo”, que não produzia efeito sobre os demais, os negros do Benin mais sérios do que nunca, o namorado da inglesa pálido como uma nuvem inesperada no céu quase sempre chumbado do inverno de Paris, os socorristas exclamando uma única palavra: “Dégagez”. Mas ninguém queria sair da frente nem de qualquer lugar. A pasmaceira estava rompida depois de meses de poucos ruídos e muitos gemidos. O casal gay, cuja porta envidraçada dava para o jardim interno, onde a suicida desabou como um pacote com uma mancha vermelha, exibia ar compungido. O homem mais alto tinha o nariz adunco. O mais baixo olhava o vazio.

– Por que ela fez isso? – perguntei.

Senti a frieza dos olhares que me fuzilavam. Quando me lembro disso, como agora, percebo que a cada vez é tudo igual e tudo diferente. Nunca é a mesma história embora, no essencial, nada mude.

– Ela bebe – sussurrou o marido da tunisiana.

– Por amor – disse a Salope.

Alguém riu. O namorado pálido fungou. Tirou do bolso um maço de papel cheio de ranho. A sombra da Torre de Montparnasse, o grande edifício de vidro negro, projetava-se como um risco. Havia sol. A inglesa era simpática, discreta e amarfanhada. Pintava aquarelas. Eram quase todos artistas ali. Uns escreviam, outros tocavam algum instrumento, outros pintavam. Todos pareciam unidos pela solidão e por alguma tristeza passada que jamais era verbalizada. A iugoslava era a pessoa mais simples. Sonhava com o fim da guerra, passava meses em Belgrado, odiava viver só, lutava com o passado composto do francês e tinha seus olhos iluminados quando falava da sua mocidade na Sérvia.

Tenho pudor em pensar nessas coisas. Conto sempre uma pequena parte. Omito. Vez ou outra, acordo de madrugada com algum desses personagens gritando algo que se repete até o sono me salvar de manhã. Depois que a ambulância partiu pela rua de Vaugirard a loura do térreo, com seu roupão rosa, começou a consertar o seu jardim. Como conseguia salvar alguma planta naqueles dias gelados? Agora, pensando de maneira simplória sobre aqueles dias, percebo que havia dois grupos: os artistas e – como chamar os outros? – os demais, que se odiavam silenciosa ou estrepitosamente. Salope era a intelectual. A iugoslava, a camponesa rústica. A loura das flores era um mistério.

Dizia-se que o namorado da inglesa era um malandro. Nunca se apresentava um dado. A prova definitiva estaria no fato de que ela se jogara pela janela. Salope falava oito línguas e via-se como uma aristocrata intelectual em meio a plebeus ignorantes. Era de origem russa. Tivera um irmão diplomata servindo na Índia. Falava sozinha. Não tomava banho. Admirava o general De Gaulle e odiava Hitler tanto quanto Lenin e Stalin. Lia o jornal “Le Figaro”. Achava “Le Monde” comunista e “Libération” muito vulgar. Não perdoava os franceses pela execução de Luís XVI e Maria Antonieta e os comunistas pela morte do
Csar e da sua família. Havia sido amiga da inglesa. Não era mais.

Passei meses, talvez anos, embatucado com a história da tentativa de suicídio da amável inglesinha, que não morreu. Voltou a viver entre nós como se nada tivesse acontecido. Apenas as suas pinturas ficaram menos vivas. Uma vez, enquanto digitava o código de entrada no prédio, 5781B, ela chegou. Murmurou o seu suave bom-dia.

– Por que fez aquilo? – disparei.

Ela se assustou. Pensei que fosse gritar comigo e me insultar. Recuperou prontamente a fleuma. O seu natural era a fala baixa, os tons pastéis, as sonatas de Beethoven, as revistas de televisão. Carregava uma cesta de vime com garrafas. Ia do vinho à cerveja com muita sede. Quando se excedia, a sua janela ficava fechada por dias. O namorado sumia. Ela me olhou nos olhos – tinhas olhos claros úmidos – e pronunciou uma única frase com o seu bonito sotaque britânico:

– A morte é a coisa mais íntima da vida de uma pessoa.

Certos dias, quando o sol se esconde, eu penso na inglesa à sombra da torre, penso na sua magreza, na sua melancolia, nas suas pinturas, nos seus olhos claros, tristes e úmidos, penso nela bebendo à janela e me sinto subitamente perdido numa amarga meditação:

– Quem foi mesmo aquela mulher?

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