Peixe de aquário

Peixe de aquário

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Carlos Heitor Cony, que morreu há pouco, aos 91 anos de idade, gostava de metáforas piscosas.

Não vá o leitor dizer que não está entendendo. Eu ficaria decepcionado. Ele usava imagens de peixes para esclarecer certas coisas. Óbvio. Piscoso não tem a ver com pisco, aquela aguardente de uva. Se bem que beber muito pisco pode levar a ver peixinhos coloridos. Nunca aconteceu contigo, piscoso(a) leitor(a)? Nem comigo. Mas aconteceu com amigos. Para Cony o escritor era peixe de águas profundas. E o cronista? Ora, peixe de aquário.

Um amigo, cujo nome preservarei, estava bebendo pisco com um italiano.

Depois de algumas doses, o italiano por alguma razão disse:

– Capisco niente!

Meu amigo, que estava mais adiantado na beberagem, reagiu:

– Coloridos, de aquário?

Terminaram no Biblioteca. Eu disse bem “no”. Um bar. Por que, enfim, o cronista é peixe de aquário? Ele deve produzir o efeito de um pisco nas primeiras doses. Precisa ser leve, colorido e fazer malabarismos. E fazer o leitor, que é volúvel, sentir assim. Por qualquer coisa, o leitor dispara o seu golpe mortal: “Chato”. O drama do peixe de aquário é ter de parecer feliz numa jaula de vidro. Já está ficando pesado. Houve um tempo em que a crônica era o “sorriso da sociedade”. O romance era o “esgar”. Que palavra é essa? Designa aquela expressão facial que nos veio ao saber que Fernando Collor pretende ser candidato à presidência da República. Tá de sacanagem!

Eu sou um peixinho vermelho, azul e amarelo. Sei que nem todos me veem assim. Que fazer? A lente distorce o objeto. Eu mesmo estava observando um aquário e enxerguei uma cobra. O dono me disse que era um acará bandeira. Como pode ter acontecido isso? O que explica essa percepção tão dilatada? Visão de mundo. Alguns chamam de ideologia. Todo mundo tem uma, especialmente quando nega. Ideologia pode ser distorção da realidade, mas pode ser também um conjunto de ideias. Mas pode ser simplesmente uma lente que impede de ver melhor.

Cronista não se interessa tanto pelo peixe quanto pela sua forma.

Trata de descrever os volteios e saracoteios dos bichinhos na transparência da água. Foca na luminosidade, nos efeitos, nas escamas, nos olhinhos esbugalhados, nas bolinhas que solta quando respira. É uma questão de método. Peixe das profundezas, o escritor quer chegar ao fundo das coisas pelas suas zonas de sombra. O cronista, peixe de aquário, tenta pescar a essência a partir da aparência. É nela que se esconde a alma píscea. Como diria o outro, no fundo das aparências.

Cony foi um peixe de aquário de bigode. Era uma espécie comum no passado. Hoje tem muito peixinho colorido com gel no cabelo. Já vi peixe de biquíni, de sunga e até de cachecol. O problema é que podem surgem predadores vorazes nos aquários. Tem peixinho que dá tanta volta dentro do que vidro que tonteia. Todo peixinho de aquário tem sua beleza e deve ser respeitado na sua autonomia criativa. Eu não admiro peixinho de aquário que não ri de si mesmo. Peixinho faz borbulhas quando ri. Sabe que do o outro lado do vidro tudo é ilusão. Sabe que depois da lente só há o rio.

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