Pela janela da alma

Pela janela da alma

publicidade

Espectros urbanos

 

      Sou um involuntário e por vezes insatisfeito habitante de uma grande cidade que estremece ao longo dos seus curtos dias. Não sei realmente se minha cidade é moderna, bela e progressista. Nem sempre a julgo. Em certas ocasiões, eu me contento em dizer que se trata de uma falsa feia lasciva com seus encantos dissimulados em esquinas e curvas. Não fosse o destino, esse nome que damos às combinações do jogo existencial aleatório, eu nunca teria saído de onde nasci. Teria passado a vida desenhando nuvens no céu e animais nas nuvens. Seria feliz com os pés descalços nos escaldantes verões e com as mãos cheias de grãos no tempo fabuloso das colheitas e das alegrias fermentadas.

Ouviria pássaros estridentes ao amanhecer e escutaria um suave piano de cauda ao cair da noite molhada pela melancolia das manhãs partidas. Certamente não experimentaria as angústias que me habitam como fantasmas que se perderam do infinito azul onde se escondem quando percebem algum olhar indiscreto. Os aviões deixariam rastros no céu tão anil das tardes de novembro que eu me sentiria pronto para voar sem jamais tirar os pés do chão, do meu chão, esse lugar onde nossas pernas são raízes buscando a seiva mais profunda da terra.

Não sou como o jovem Jean-Arthur, que da sua janela via “espectros novos rolando através da espessa e eterna fumaça de carvão”. Da minha janela eu vejo espectros urbanos colorindo vogais e desaparecendo solidamente em dobras de concreto armado até os dentes. Esses espectros chamativos atravessam as ruas ignorando os sinais.

– Atenção!

Se Jean-Arthur tinha sua pátria numa casa de campo, eu tenho meu universo num campo que é pátria, mátria, fratria e babilônia. Como não lembrar da alegria do milho amarelando na imensidão, como esquecer da beleza do trigal ornando a estrada que serpenteava para se esconder dos carros, como não aspirar ainda agora o cheiro de melão, não reverenciar a divindade das plantas, não epifanizar a verdura dos campos, não furtar perfumes orvalhados, não gozar como o regato serelepe, não honrar os frutos vermelhos, não idolatrar as cores vibrantes, não jurar amor eterno ao sol risonho e límpido, kiwi alterando a paisagem, lua nova empalidecendo o céu, mãe, nuvem, opala, paraíso, querência, ruela, solidão, turvo, união, verbo, xixi e ventania, tudo numa mesma composição naturalmente indescritível?

Aquilo que não existia, imaginava-se, inventava-se, riscava-se na areia ou se ouvia numa concha recolhida ao pé da lagoa, que era apenas uma aguada lindamente negra. Não é da espessa fumaça que lembro quando me ocorre lembrar daquilo que pede esquecimento, mas da tristeza da chaminé solitária espichando-se como uma girafa na vã tentativa de beijar uma nuvem retardatária. Também não é da lama do inverno que eu recordo, mas da força do sol secando as lágrimas dos desesperados, que havia, pois por toda parte a mais dividida das coisas era a desigualdade, um de um lado, 99 do outro, separados por arame farpado e farpas soletradas como súplicas em lugar de insultos.

A morte, contrariando a narrativa do poeta errante, que escreveu antes de errar ou de acertar seus passos com a vida africana, tinha tantos prantos que eles se confundiam com alaridos, cascatas, ladainhas, zumbidos, murmúrios, preces, pedidos, reclamações, coaxar de rãs, arroios borbulhantes, maldições, pregações, sussurros, confissões, segredos, degredos, medos, interdições, tristes poemas. As roupas negras do luto rasgavam os meses coalhando de lembranças o que o tempo tentava apagar para impor a lei da continuação da vida. Então um dia, solene como uma brisa depois da chuva, ouvia-se um riso.

Rimbaud denunciava a redução da moral e da língua à mais simples expressão. Denunciava? Enfim, falava disso, o que dá no mesmo, embora ninguém se importe com o mesmo ou com a diferença. Os espectros que agora colorem a avenida rasante não confessam suas fantasias, não partem para a África, não me convidam para navegar. Eu teria, não fosse a estrada, feito o caminho inverso. Falaria outra língua, aquela que expressa a moral das árvores, dos bichos, dos homens simples, naturalmente em alquimia com a devoção ao lento girar das estações.

Se Jean-Arthur Rimbaud resumiu-se para sempre numa “Temporada no inferno” e nalgumas “Iluminações”, quem sabe ainda podemos nos expandir em nossas divagações passageiras nestes tempos em que as máquinas falam por nós e exigem nosso silêncio absoluto e permanente salvo na hora de aplaudi-las ou de atualizá-las enquanto nos tornamos pacatamente obsoletos! A linguagem vai aos poucos se apagando, sumindo como um riacho durante a seca que se eterniza até se consumir e minguar feito um solo crestado e abandonado por seivas e plantas. Quem ainda mergulha no adensamento da expressão para se abraçar, quem sabe, com a fumaça branca na esperança do encontro da chaminé com o céu?

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895