Pelas ruas de Paris

Pelas ruas de Paris

publicidade

      Eu gosto mais do Brasil. Nunca pensei em morar definitivamente na França. Acho ridículo quando me colam a etiqueta de francês. Sou filho das entranhas da minha terra e não posso viver sem ela. Ao andar pelas ruas da Europa num mês de novembro, como desta vez, com a proximidade do inverno chumbando o céu, eu faço viagens interiores sem fim. Eu me procuro no tempo que passa e nas ruas que me viram passar tentando entender, por comparação, quem somos, quem fomos, quem seremos. Nunca aprendi tanto sobre o Brasil quanto nos anos em que morei como estudante na França, onde escrevi “Anjos da perdição, futuro e presente na cultura brasileira”. Abro a janela do quarto do hotel e deixo entrar um sopro de ar frio. Contemplo uma nesga de imagem de Montparnasse e me revejo curvado pelo vento puxando o carrinho do supermercado e empurrando meus sonhos de jovem de 30 anos.

Não consigo idealizar a Europa. Conheço suas qualidades e seus defeitos. Reconheço a maior organização das coisas e não deixo de perceber algo como uma melancolia no comportamento das pessoas. Triste Europa. Sempre tão perto da perfeição e da barbárie, da ciência e do terrorismo, da cultura e do ódio, da democracia e da intolerância, da solidariedade e de novas formas de fascismo. Já vi pessoas sendo roubadas no metrô parisiense e já passei meses deixando a porta aberta do apartamento onde morava por falta de tempo ou de ânimo para arrumar a fechadura. Já senti medo em São Paulo e já senti medo em Paris. Adoro essa cidade luxuosa, com seus enclaves de pobreza, que nunca será minha. Caminho por lugares que conheço como a palma da minha mão e vejo linhas que se perdem em bifurcações de destino incerto. Ando pelas ruas de Ménilmontant e me sinto ao mesmo tempo em casa e num lugar desconhecido, um cruzamento de culturas e de esperanças tensas.

Pego um trem na estação Montparnasse e vejo um quarto de século da minha vida tomar o rumo silencioso da periferia. Eu me vejo lendo e empilhando livros sobre teoria literária num cubículo que me parecia o mais amplo dos espaços de utopia e de ilusões. O homem que eu vejo subir e descer de ônibus, metrôs e trens em Paris, esse homem que eu fui, ainda me espia de um café bebendo uma água mineral Perrier. É um homem que não bebe álcool, ignora os bons vinhos franceses, sonha em ser escritor, sente saudades do Brasil, segue os cursos de monstros intelectuais como Umberto Eco, Jacques Derrida, Michel Maffesoli e Pierre Bourdieu, aprende na informalidade com Jean Baudrillard e nos encontros com o sábio Edgar Morin. É um homem que tem pressa de aprender, de viajar, de acumular conhecimentos e de voltar para casa.

A cada vez, como agora, piso sobre marcas invisíveis dos meus passos, sigo minhas pegadas imaginárias que foram reais e tento capturar cada momento em que decidi, bifurquei, saltei no escuro, quando então me tornei o que sou sem ter previsto como seria. Eu me lembro de Baudrillard me dizendo na Closerie de Lilas: “Teremos cada vez mais escritores e menos leitores”. Eu me lembro de uma cigana me avisando em Saint-Germain: “É longo o caminho”. Eu me lembro de ter lido em Jean-Yves Tadié: tudo é permitido desde que se encontre um leitor. Eu me lembro de ter me dito no Jardim de Luxemburgo numa tarde de verão: eu conheço o meu lugar, mas não sei se voltarei a ele. As ruas que eu vejo em Paris não são turísticas nem famosas. São ruas misteriosas em que homens comuns avançam com firmeza: para onde?

Em Paris, nos últimos 27 anos, passei alguns dos meus melhores e dos meus piores dias. Os melhores foram aqueles em que me senti livre e criativo como um Rimbaud partindo para traficar armas na África. Os piores foram aqueles em que me senti entre parênteses, contemplando o mundo dos outros, acompanhando a marcha das estações, esperando a árvore do nosso pátio voltar a ter folhas. Nasci, morri e renasci a cada ciclo da natureza. Em alguns instantes, fui tomado por uma sensação mística de transcendência e de transfiguração. Em outros, experimentei uma acachapante convicção de estar com os pés soldados na terra. Um dia, saí caminhando sem rumo e tentando memorizar para sempre o que via como se um fosse um arqueólogo de minha própria existência: prédios, carros, árvores, uma mulher de amarelo, uma criança de vermelho num patinete azul, cerejeiras em flor, telhados.

Tudo se esfumou aos poucos. Ainda vejo, no entanto, a mulher de amarelo dobrando uma esquina e a criança do patinete gritando: “Maman, regarde”. Por que guardei coisas tão insignificantes e perdi outras tão importantes? Por que me lembro do dia em que falei para um garçom na praça da Sorbonne, o importante é produzir diferença e descobrimento? Por que me recordo do seu sorriso de cumplicidade? Por que me lembro de Dora cuidando do jardim quando o frio já cobria tudo de solidão? Cada passou que dou, como agora, é um passo que já dei. Dia desses me reencontro na volta de uma esquina ou num café. Até.

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895