Pelos cabarés da vida: lembranças de repórter

Pelos cabarés da vida: lembranças de repórter

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Eu tinha 29 anos de idade (sim, eu já tive essa idade), era repórter de jornal, estudava antropologia, estava de casamento marcado com a Cláudia e achava fantástico o que acontecia na aparente banalidade do cotidiano.

Aquilo que me fazia vibrar era vivido por pessoas muito simples em lugares bastante particulares: pensões familiares, bairros de periferia, salões de beleza, barbearias, ruas, recantos com histórias singulares – Alto da Bronze, Bom Fim e Morro da Cruz.

Nessa época, eu não sonhava, como tantos colegas, em ser correspondente de guerra, mas me preparava silenciosa e teimosamente para ser correspondente internacional, o que viria a ser, baseado em Paris. Queria mesmo era desvendar as histórias extraordinárias da vida ordinária (comum) de uma cidade grande como Porto Alegre. De uma série de reportagens para um belo caderno dominical, editado pelo mestre Emanuel Mattos, surgiu meu livro “A noite dos cabarés”, título de uma das matérias. A primeira edição, com uma bela capa preta, teve o selo da Mercado Aberto, à época uma poderosa editora. Agora, nesta nova edição, pela Pradense, tendo na capa uma cena do “Moulin Rouge” de Toulouse-Lautrec, vejo-me diante de um espelho.

Releio. E me descubro no tempo. Um fantasma.

Não eram as anedotas que me interessavam – detesto a mania que têm alguns jornalistas de atravancar seus livros com anedotas –, mas o imaginário e o vivido. A reportagem que mais me emociona, quando releio tudo, tem um título enxuto: “Os excluídos”. Uma viagem às entranhas do Hospital Psiquiátrico São Pedro. Retrospectivamente dedico meu livro a todos os estudantes de jornalismo que tive. Mas também o indico para os futuros jornalistas de qualquer parte do país.

É uma obra sobre a paixão de um ainda jovem jornalista pelo ofício de repórter e pelas pequenas grandezas e as grandes desesperanças de homens e mulheres na luta diária por um fragmento de felicidade.

Hoje, às 18 horas, no pavilhão de autógrafos da Feira do Livro de Porto Alegre, quando dedicar o meu “A noite dos cabarés” (R$ 10) para algum leitor perdido no tempo, eu me reencontrarei com o passado, uma época da minha vida em que uma psicóloga amiga me classificou como contrafóbico. Algo como louco para ir ao encontro daquilo que me amedrontava. Acho que ainda sou assim. Um dos capítulos do livro é uma entrevista com Mário Quintana. Guardo na memória duas das suas tantas e deliciosas provocações, “tudo é natural, até o sobrenatural” e “fumo para curar a gripe, o cigarro facilita a expectoração”.

Se alguém quiser saber, estou inteiro nas páginas de “A noite dos cabarés”. Inteiro como um vaso trincado. Exponho até as minhas rachaduras. Estava afinando o meu método: o “desencobrimento”. O repórter, o poeta, o cronista, o historiador, o antropólogo, o sociólogo, todos, enfim, devem fazer emergir os pequenos sentidos encobertos pelo excesso de familiaridade do cotidiano. Será que ainda existem todas as pensões, bordéis e barbearias que visitei para compor minhas reportagens? Seria o caso de andar sobre os meus rastros para tentar agarrar o que se foi e saber se algo de mim por lá ficou.

E o que ficou de Porto Alegre.

O que ficou da boemia.

O que ficou das barbearias.

O que ficou dos excluídos.

O que ficou das suas lendas.

O que ficou das suas noites.

O que ficou no Alto da Bronze,

O que ficou dos seus morros.

O que ficou dos seus poetas.

O que ficou dos seus jogadores.

Porto Alegre, um corpo tatuado de histórias feitas por todos nós.

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