Perdas e ganhos

Perdas e ganhos

Contas de ano inesquecível

publicidade

 

      E assim termina o ano de 2020: sem Maradona, sem Paoli Rossi, sem Armando Manzanero, sem Pierre Cardin e sem nossa velha normalidade. Nem sabíamos que gostávamos tanto dela. Perdemos a inocência da vitória definitiva sobre o passado. O tempo das pandemias, que parecia coisa de séculos distantes ou até da Idade Média, voltou com força sem pressa de ir embora. Fica a pista de que a cada dia pode surgir um novo vírus ou uma mutação do atual. Onde estamos? Na pós ou na hipermodernidade? Ou na hipomodernidade? No excesso ou na falta. O mundo triunfava na sua eterna linha reta em direção ao futuro. De repente, empacou. Ainda assim, foi buscar na ciência a solução para o seu grande tropeço.

      Duas grandes correntes filosóficas e ideológicas enfrentaram-se como nunca: de um lado, os modernistas confiantes na marcha segura para o amanhã; do outro lado, os tradicionalistas convictos de que só o passado, com seus rituais, dogmas e mistérios, pode garantir unidade e ordem. Talvez seja útil começar o ano lendo “Guerra pela eternidade” (Unicamp), do pesquisador norte-americano e professor da Universidade do Colorado Benjamin Taitelbaum, que passou quinze meses entrevistando gurus da extrema direita, como Steve Bannon e Olavo de Carvalho. Numa entrevista ao “El País”, Taitelbaum diz: “O Tradicionalismo é originalmente uma escola espiritual filosófica que se tornou política em certo nicho. Os seguidores basicamente acreditam que a humanidade está ao fim de um longo ciclo de declínio e que vai ser concluído com destruição e renascimento”. O futuro estaria inteiro no passado como uma fórmula mágica a ser acionada num ritual enigmático.

      Também não será tempo perdido ler “Como as democracias morrem” (Zahar), de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, professores de Harvard. Para os sem tempo, um trecho: “Se os autoritários devem ser mantidos fora, primeiro eles têm que ser identificados. Não existe, infelizmente, nenhum sistema de alarme prévio totalmente seguro. Muitos autoritários podem ser reconhecidos com facilidade antes de chegarem ao poder”. Mas não todos. Se foram muitas as perdas de 2020, há ganhos: os americanos despacharam Donald Trump para casa. Isso não significa que a direita não pode governar. Claro que pode. Trump não é a direita, mas a extrema direita populista e reacionária. Joe Biden não é de esquerda. Antes de ser Democrata, é democrata. Para a esquerda mundial, ele é de direita. Ganhou no voto direto e indireto. Mesmo assim, o mau perdedor aferrou-se às suas mentiras.

      Em 2021, precisaremos de mais democracia: respeito às regras do jogo, pluralismo e racionalidade. Como defende o economista americano Paul Krugman, prêmio Nobel da economia, “está claro há anos que o moderno Partido Republicano não consegue lidar com a verdade”. Na democracia, saber perder é a essência do sistema. Krugman alerta: “O fato é que a rejeição republicana aos fatos não começou em 2020, ou nem mesmo na era Trump. A negação quanto à mudança do clima – que inclui afirmações de que o aquecimento global é uma trapaça perpetrada por uma cabala de cientistas internacionais – é um distintivo de identificação com o partido há muitos anos”. É desse contágio também que o mundo precisa se livrar. A verdade é sempre uma ótima vacina que alguns não querem tomar.


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895