Placebo cloroquina

Placebo cloroquina

Funciona, não funciona, para que serve?

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      A cloroquina foi uma doce esperança contra o coronavírus. Eu tomei. Era abril de 2020. Depois de sete meses com sequelas, fiquei bom. A cloroquina ajudou? Não sabemos. Depois disso, a Organização Mundial da Saúde concluiu que o medicamento não tem efeito na luta contra a Covid-19. Há médicos e cientistas quem dizem o contrário, como o famoso Didier Rauolt, cada vez menos em alta. Até Donald Trump, o destrambelhado presidente americano, parou de falar, antes mesmo de naufragar, nessa suposta panaceia. No Brasil, a crença na cloroquina persiste. Por quê? Talvez por falta de verdadeira opção contra o inimigo invisível. Entre nada e dar cloroquina, dá-se cloroquina com a esperança de que não se fizer bem, mal não fará. Só que pode fazer mal. O que pode justificar a insistência no tal “tratamento precoce” com cloroquina e ivermectina? Uma frase de Jair Bolaonaro dá uma pista:  "Aqui o pessoal fala que não pode, mas vai oferecer o quê?”

      Vai uma hipótese: o efeito placebo cloroquina. A pessoa quer ter a sensação de que está protegida. Precisa ingerir alguma coisa. A cloroquina cumpre uma função política. A pessoa acredita que pode ser salva por essa droga e vai à luta. Sai às ruas. Faz compras. Viaja. Se adoecer, toma o remédio. Se melhorar, mesmo que tenha sido justo por força do seu organismo, foi a cloroquina. Se morrer, foi a violência do vírus. Não tem erro. A cloroquina é uma ilusão mobilizadora. A cloroquina cura? Não se tem certeza. A OMS diz que não. A direita quer e defende com unhas dentes. A vacina protege? A comunidade científica internacional diz que sim. A direita rejeita. Quer que seja opcional. Só que ao tomar a vacina a pessoa protege também terceiros. Se não tomar, pode se contaminar, estar assintomática e transmitir o vírus.

      Não é questão meramente individual. Chegou-se ao meio termo extremo, se é possível falar assim: tratamento precoce (cloroquina e ivermectina) para quem quiser; vacina para quem quiser. Em vez de ser científica, a escolha passa a ser pessoal, ideológica, subjetiva. A ilusão da cloroquina permite fortalecer a ideia de que a economia não pode parar. Quem pode querer a economia parada? Ninguém. Por que, então, a Inglaterra foi para um novo lockdown? A cloroquina inglesa é de má qualidade? Uma leitura flexível da questão poderia levar a uma conclusão deste tipo: mesmo que a cloroquina ajude, o que não está provado, ela não basta e só a vacina pode devolver a normalidade. Enquanto não se vacina, o isolamento social leve ou pesado se impõe.

      Talvez algum dia, quando estivermos livres do coronavírus, esperando que isso aconteça logo ou nalgum tempo, políticos e especialistas falem francamente sobre a cloroquina. Haverá confissões? Pedidos de desculpa? Arrependimentos? Contextualizações? Tomara que se descubra também uma vacina para a doença eterna: a obsessão por ter razão. Quem já não foi acometido por esse mal? Há quem aponte o dedo: quer ser dono da verdade! E, em outras ocasiões, cobre: “Isentão!” A incoerência é um dos artigos mais bem distribuídos no mundo. Não poupa idade, classe social, nacionalidade, gênero. É como uma cloroquina.


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