Poemas que eu levaria para uma ilha

Poemas que eu levaria para uma ilha

Um lugar sem coronavírus

publicidade

      Se eu tivesse de ir para uma ilha, onde o coronavírus não chegasse, levaria poemas comigo. Eu disse poemas, não poetas. Há muito firmei a convicção de que cada grande poeta tem meia dúzia de poemas excepcionais, o que já é fantástico. O restante, livros inteiros, preenchem o vazio das tentativas desesperadas de acertar novamente. A poesia pode ter rima ou não. Pode ser feita de imagens inusitadas e de versos sem sentido, impondo-se a musicalidade, o ritmo, a beleza estranha do invisível. Tudo é permitido em busca do sublime imortal.

      A poesia que eu amo, no entanto, não só tem sentido como revela sentidos escondidos na superfície da existência: traz à tona, dá a ver, faz emergir, revela, desvela, descobre, destapa, “desoculta”, desencobre, mostra. Formulei a teoria do descobrimento. A grande arte é aquela que descobre (desencobre) sentidos que cada um de nós não vê a olho nu. Fernando Pessoa é um dos gigantes do descobrimento: “Navegar é preciso. Viver não é preciso”. Navegar e viver são sinônimos. Mas navegar se faz com ciência. Viver é impreciso. Nada a ver com necessidade. Repetição na diferença e diferença na repetição. Mario Quintana descobriu sentidos no seu magistral poema “O mapa”. Eliot multiplica sentidos em ‘East coker”: “Umas após as outras/As casas se levantam e tombam, desmoronam, são ampliadas...” Somos essas casas.

      Na minha fuga, eu levaria poemas de Bandeira, Drummond, Verlaine, Baudelaire, Rimbaud. Descobri que poetas podem ser muitos vaidosos e arrogantes. Dão lições, dizem quem pode ou não entrar no campinho. Nesta minha existência de interessado por literatura, conheci pessoalmente bons poetas, nenhum, exceto Quintana em alguns dos seus poemas, como todo gênio, realmente grande. Na minha retirada para a solidão, teria um livro sempre à mão: “Vinte poemas de amor e uma canção desesperada”, de Pablo Neruda. Existem bons poetas de novas gerações. Só que, como se estivessem envergonhados, eles fazem uma espécie de paródia da Bossa Nova. Falam tão baixinho, com medo da grandiloquência, que equiparam a voz de João Gilberto a de Nelson Gonçalves. Tudo isso com o nariz empinado e a certeza da genialidade.

      Poesia não é apenas juntar frases musicais que não vão até o final das linhas. Quantas vezes eu já revelei aqui a minha paixão por este poema de Neruda? “Nós perdemos também este crepúsculo./Ninguém nos viu à tarde com as mãos unidas/enquanto a noite azul caía sobre o mundo./Vi, de minha janela,/a festa do poente nos montes distantes./Às vezes, qual moeda,/acendia-se um pouco de sol em minhas mãos./Eu te recordava com a alma apertada/por essa tristeza que conheces em mim./Então, onde estarias?/Junto a que gente?/Dizendo que palavras?/Por que me há de vir todo este amor de um golpe/quando me sinto triste e te sinto distante?/Caiu-me o livro que sempre se escolhe ao crepúsculo,/e como um cão ferido rolou-me aos pés a capa./Sempre, sempre te afastas pela tarde/até onde o crepúsculo corre apagando estátuas”. Lindo. Quando as luzes se apagam só nos resta a fabulosa ilha da poesia.


Mais Lidas

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895