Poesia americana

Poesia americana

Morreu Ferlinghetti, o último beat

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      Em 1991, a convite de organismos norte-americanos, fiz um giro por 15 localidades nos Estados Unidos. Em São Francisco, visitei a livraria City Lights, criada pelo poeta e editor beatnik Lawrence Ferlinghetti. Ele morreu nesta semana aos 101 anos de idade. Pedi uma entrevista. Ele recusou. Disse que estava mergulhado num universo poético que o impedia de falar em prosa. Gostei da saída. No seu currículo impressionante consta a publicação do poema o “Uivo”, de Allen Ginsberg. Na época, 1956, o puritanismo americano censurava palavrões e pregava moral de cuecas, especialmente de senadores. O editor pegou uma cana por publicar obscenidades. Nem eram rachadinhas.

      A estética beat revolucionou a poesia. Ginsberg, em “O uivo”, chutou o balde: “Eu vi as mentes mais brilhantes da minha geração destruídas pela loucura, famintas histéricas nuas”. William Carlos Williams meteu o pé na porta: “Já que você carrega/uma conhecida verdade/Mais conhecida como Desejo/Pra que vesti-la de adornos/ou torcê-la até ficar sob medida/para ser entendida?” A geração beat enfrentou muita crítica dos supostos entendidos: a poesia não seria a seara deles. Coloquial demais, irreverente, palavrosa, louca. Os sabichões pregavam no deserto. Ninguém podia fazer a chuva parar.

      Havia muitas mulheres no chamado “movimento beat”. O machismo literário da época não lhes deu destaque. Hettie Jones escreveu

“Sempre fui ao mesmo tempo
mulher o suficiente para comover-se até o pranto
e homem o suficiente
para pegar o carro e me mandar
em qualquer direção.”

      Lawrence Feringhetti pintou o cotidiano em cores ocres:

 

“Mas foram-se embora

e uma folha desprendeu-se da árvore

e a caiu no lago

e ficou à tona de água como um olho a piscar círculos

e depois o lago ficou muito

tranquilo

e só lá ficou um cão

sem fazer nada

na borda do lago

a olhar para baixo

para os peixes em transe

e sem ladrar

nem dar ao ridículo rabo nem

nada

de modo que

então por um momento

no crepúsculo do final de Novembro

o silêncio pendeu como uma ideia perdida

e uma estátua virou

a cabeça.”

Percurso e legado – Há muitos tipos de poesia: aquela que ainda valoriza métrica e rima: aquela que busca sonoridade e “adensa” o significante em detrimento do significado; aquela que valoriza a oralidade acima de tudo. Defendo uma estética do descobrimento: uma poesia que tire o véu, traga sentidos encobertos à tona, dê a ver o que o olhar domesticado não enxerga, produza polissemia e desocultamento. A poesia, como o futebol, é de todos aqueles que a praticam e acompanham. Autodenominados especialistas tentam cercá-la com arame farpado. Para cada crítico aparecem dez entusiastas. Machado de Assis, que foi poeta mediano, implicava com os maus poetas. No fundo, teria preferido ser admirado mais como poeta que como prosador.    Jack Kerouac matou a pau: “Assim, na América, quando o sol se põe, eu me sento no velho e arruinado cais do rio olhando os longos, longos céus acima de Nova Jersey, e consigo sentir toda aquela terra crua e rude se derramando numa única, inacreditável e elevada vastidão, até a costa oeste, e a estrada seguindo em frente, todas as pessoas sonhando naquela imensidão, e em Iowa eu sei que agora as crianças devem estar chorando na terra onde deixam as crianças chorar”. Tem muita poesia por aí bem rimadinha e sem filosofia. Tem muita filosofia sem poesia. E muita obscuridade tornada poética pelo silêncio que provoca. Poetas brigam, como os demais, por reconhecimento. Precisam ser agendados no imaginário do tempo em que vivem. O agendamento passa por marketing, selo ou por muita sorte. Não há razão para desesperar: o poeta deve viver da sua bela ilusão.


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