Poesia: despedida do ano em imagens

Poesia: despedida do ano em imagens

Nunca fomos humanos

publicidade

Coleção

 

Na grande e áspera rua,

Relva no leito deserto,

Cresce o que não sabe morrer,

Aquilo que se recusa a não ser,

Influências no sinal fechado,

Rumorosa música dos vinhos,

Amores pendurados na memória,

Fotografias sem as legendas,

Angústias esculpidas em mármore,

Selfies com árvores tombadas,

Vidas negras que importam,

Mas são esquecidas ou violentadas,

O homem negro covardemente assassinado,

Índigenas que perdem terras e culturas,

Mulheres vitimadas por mschos cruéis,

Como se a crueldade fosse uma interpretação,

Extensas pradarias sem paixões nem poesia,

Caminhadas que já não fazem caminhos,

Pegadas que perderam as suas gaivotas,

Livros caídos aos pés sem suas capas.

Quais são os nossos papéis

Quando uma luz vermelha se acende

Para iluminar os dados lançados,

Que não abolem o acaso nem trazem sorte,

Essa morte dos que jamais colhem o sol da manhã?

Até quando faremos do mal um estranho bem,

O bem forjado dos que acumulam muitos bens,

Poderosa narrativa dos vencedores,

Esses seres que não amam epopeias,

Contentando-se com a marcha dos números,

Até que eles se convertam em perdas?

Na estrada amarela da minha paciência,

Madeira nobre ou pobre de nossa existência,

Esqueço de tirar o terno da eloquência,

Deveria fazer das palavras um pacato jogo de bilhar.

E colecionar imagens capazes de me emocionar:

A serpente que dança, a passante que desaparece,

A luz verde do outro lado da baía, no cais,

O homem que implora: não consigo respirar,

A criança jogada com a água da bacia,

Flores melancólicas na escrivaninha,

O velho amigo que partiu para o Norte,

O parente que perdeu para a morte,

O vírus que o todo-poderoso não viu,

Mas estranhamente contraiu e sentiu,

A chuva ácida na tarde plácida,

A queimada devorando antas e matas,

Bolinhas de gude na infância interminável,

Quando acordei era passado do meio-dia,

A devastação já não cabia num único poema.

Então ela disse pisando as folhas caídas:

"Houve um verão inesquecível,

Eu queimava mais do que o sol da tarde,

Era primavera na minha vida".

Doze de agosto de um ano qualquer,

Ou Natal à sombra de uma figueira.


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895