Polêmicas do politicamente correto
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Sou um branco apaixonado pela cultura negra. Acabo de escrever um livro, resultado de cinco anos de pesquisa, sobre 1888, o ano esquecido (pela nova histórica branca), raízes do conservadorismo brasileiro. Não pagamos ainda a nossa dívida com os africanos transplantados à força para o Brasil e seus descendentes. Tenho meu olhar sobre o passado. Nem sempre na direção considerada adequada. Gilberto Freire, por exemplo, me parece menos o advogado de uma democracia racial do que o crítico implacável das teorias racistas dominantes no século XIX e no começo do século XX, o intelectual conservador que percebeu a força cultural da miscigenação. Eis um princípio defensável: misturar pode ser mais bonito do que separar. Mas miscigenação não pode ser uma astúcia racista de branqueamento. Onde estamos nisso tudo.
Todo esse nariz de cera para perguntar: por que uma mulher branca não poderia usar turbante ou trancinhas? Por que as culturas não poderiam se misturar? Sendo caricatural: uma negra não deveria poder fazer pizza? O politicamente correto derrapa quando se transforma em patrulhamento indiscriminado em nome de algum tipo de separação ou de pureza cultural ou étcnica. Pode um branco escrever sobre a história dos negros? Pode um negro escrever a cultura branca? Tenho eu direito de escrever sobre 1888? A abolição, com seus limites e contradições, resultou de uma grande luta travada pelos negros com a participação de brancos. Essa luta se deu nas ruas, na imprensa, nas fazendas e no parlamento. Três dos grandes líderes abolicionistas eram negros: José do Patrocínio, André Rebouças e Luiz Gama. Filhos de mãe negra com pai branco. Nos termos da época, mulatos. Joaquim Nabuco era branco. Antônio Bento, que ajudou a organizar fugas de escravos em massa, era branco, católico e conservador. Essa comunhão deve ser negada?
Chegamos às polêmicas do momento: as marchinhas clássicas de carnaval devem ser banidas por conteúdo racista? O termo mulato não pode mais ser usado? Mulato vem de mula. Tem uma raiz evidentemente racista. O sentido, porém, deslocou-se e quando usado hoje é apenas a descrição de uma diferença de cor de pele? Se pensamos em Bruna Marquezine e Xuxa, podemos dizer que são duas mulheres, duas mulheres brancas, sendo uma morena e outra loura. Se pensamos em Zezé Motta e em Camila Pitanga, devemos dizer que são duas mulheres negras. Não é possível dizer que uma é preta e outra mulata? Deve-se dizer que uma é negra de pele escura e a outra negra de pele clara? Pode existir um termo para descrever essa diferença? O filho de negro e de branco é sempre negro? Mesmo com pele branca? É mestiço? Louro e moreno não carregam carga preconceituosa. Raças não existem. Cor de pele, sim.
As teorias racistas são construções artificiais elaboradas a partir de sinais físicos externos como a cor da pele. A raça veio depois da cor. Seria possível criar um termo não preconceituoso para descrever a diferença de cor de pele de Machado de Assis e de Pelé, de André Rebouças e do Barão de Cotegipe, que tinha pele branca, mas era acusado de ter sangue negro? Rebouças, no Brasil do século XIX, era homem de elite: engenheiro, empresário, com entrada na família real, consumidor de ópera. Teve escravos. Em viagem aos Estados Unidos, não conseguia hotel por ser negro. Isso significa que o Brasil não era racista? Claro que era. Sem Rebouças talvez a abolição não tivesse acontecido em 1888. Sem as lutas dos escravos também não. O que isso significa? Talvez que há complexidade nesses processos.
As marchinhas de carnaval devem ser proibidas?
Muitas composições de Lamartine Babo e Noel Rosa devem ser silenciadas? A Amélia, de Mario Lago, deve ser banida por seu machismo explícito? Ou é possível tomar essas músicas como brincadeiras, filhas de uma época, com aspectos que vão além das letras, e curti-las sem acionar um mecanismo de atualização de preconceitos? Marchinhas como “Maria Sapatão” e “Nega do cabelo duro” são obras de arte popular que transcendem as letras gestadas no imaginário das suas épocas? Ou cantá-las hoje revela o preconceito que não quer se entregar?
A forças das marchinhas polêmicas vem do fato de que elas são musicalmente fantásticas. Sem dúvida que elas têm conteúdo preconceituoso. Seus autores certamente eram homofóbicos e machistas. Eram racistas? Como grande parte da população brasileira de então. Isso os absolve? Apenas em parte. Não é proibido estar à frente do seu tempo. Monteiro Lobato foi racista. José de Alencar era racista empedernido. A força das velhas marchinhas revela também a mediocridade das novas. Façamos novas marchinhas geniais para que as velhas sejam suplantadas com seus preconceitos. Entendo perfeitamente a dor de quem continua a ser ofendido por letras que nunca param de tocar. Afinal, por que precisamos nos divertir ofendendo os outros? As culturas podem pertencer a todos se usadas com respeito.
Misturar faz mais bem do que separar.
Entre negritude e branquitude não é mais interessante a negribranquitude brasileira?
Anita, com seus trancinhas, disse que ninguém é branco no Brasil.
Somos todos mulatos?
Respeitosamente, é claro.