Por amor aos livros

Por amor aos livros

O personagem grita: os negros foram traídos em Porongos

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      Esta história deveria ser contada em primeira pessoa. Mas, como narrador onisciente (aquele que sabe de tudo sem precisar entregar as suas fontes nem dar explicações aos leitores e ao editor), não confio no personagem. Ele é capaz de tudo. Melhor mantê-lo sob controle. Não fosse parecer grosseiro, diria que esse cara é um safado. Bom, nada tenho contra ele de pessoal. Até hoje, ele não me faz nada. É só uma manifestação quanto à psicologia do protagonista deste conto: um tipo escorregadio, canalha simpático, sedutor, mentiroso. Dá para deixar alguém assim tomar a palavra? Ele certamente deturparia os fatos.

      Não confie, leitor, em personagem que já começa exigindo autonomia ou fazendo discursos sobre a desigualdade. Se não for comunista, pode querer cometer um autoricídio por um nada. A literatura está cheia de gente assim. Sou sincero. Cansei de narradores em cima do muro. Contam histórias de assassinos como se descrevessem borboletas ou escrevessem um tratado de botânica. Julius não é um assassino. Nunca teria coragem de matar um mosquito. Talvez por isso tenha tido dengue duas vezes. É o que se pode chamar de 171.

      Julius foi preso numa tarde de chuva fina. Foi a primeira coisa que me contou. Nunca entendi a importância desse detalhe para a história. A prisão aconteceu em um posto de gasolina. Ele estava sem carteira de motorista. A polícia procurava uma traficante de drogas e deu uma batida no local depois de receber uma pista anônima. Julius garante que foi uma armação contra ele. De quem? Nunca soube explicar. Dizia que explicar demais tira a participação do leitor, que larga o texto. Já dá para sentir a dificuldade de um diálogo com ele. Manipulador e rápido no gatilho, é o tipo do cara com desculpa para tudo. Um enrolador. Boa pinta, tem sempre um Balzac na ponta da língua. Se precisar, sai até um Paul Auster ou mesmo um japonês.

      Quando lhe mostrei o parágrafo acima, observou com afetação: “O que tem a ver boa pinta com ter um Balzac na ponta da língua?” Esse é o homem. Acho que não preciso gastar mais espaço com a sua descrição. Faltam dados? Eis a ficha dele na delegacia: branco, 1m72, olhos castanhos, 54 anos, escritor (sic), natural de Ronco (?), ensino superior incompleto, portador de uma tatuagem no lado esquerdo do pescoço: o distintivo de um clube de futebol desconhecido. Consta que não quis declinar o nome do time, tendo se mostrado ofendido com o que chamou de “gigantesca ignorância”. Feito? Posso continuar o caso?

      Devo admitir que Julius tem um lado afável bastante autêntico. Comove-se com moradores de rua, discursa contra as injustiças deste mundo, olha o cair da tarde com ternura, lembra-se da mãe com os olhos marejados, dá moedas aos pedintes, comporta-se dignamente diante das autoridades policiais, não reclama da sorte, tem planos mais ou menos verossímeis: terminar a faculdade, conseguir uma editora, fazer sucesso, viver de livros. Esse último projeto é, avisa, de longo prazo. Enfim, um personagem típico, cheio de sonhos e de ilusões.

      O delegado quis saber se ele não se acha velho demais para sonhar em viver de livros. Julius afagou os cabelos muito lisos e escuros. Sorriu. Parecia buscar a palavra certa para não chocar:

– O senhor tem sonhos, delegado?

– Claro.

– Qual o seu sonho?

– Ganhar sozinho na megassena.

– Mais fácil eu viver de livros.

      Ah! Algo importante que eu estava esquecendo (narrador onisciente também esquece): Julius está na sua quinta passagem na polícia. Segundo ele, sempre pela mesma razão. Algo que não esconde: roubo de bibliotecas privadas. Desta vez, foi pego tentando invadir um sítio onde estariam abrigados doze mil volumes de ficção. A polícia confirmou a existência de uma estante com mais de mil livros no local. Julius justificou-se dizendo não ser fácil ter informações precisas sobre livros. Os informantes, explicou, deslumbrados por internet e games, confundem-se e exageram na quantidade. Enfim, um pesadelo.

      O delegado chamou de inverossímil a motivação de Julius. Isso pareceu aborrecê-lo tremendamente. Um insulto maior do que ser chamado a todo momento de vagabundo. Ao ser tratado de meliante, contestou:

– É um termo que envelheceu. Por favor, seja mais atual.

      Assim. O delegado não conteve a sua curiosidade:

– O que busca? Edições raras? Coisa de colecionador?

– Não roubo pra vender, imagina! Quero leitura.

– Pra que roubar o que tem na internet?

– Delegado, não fale assim que não fica bem.

– Como?

– Eu amo o papel, o cheiro dos livros, o impresso. É uma cultura.

      Fiz bem em não deixar essa figura contar a própria história, não? O que não diria do delegado? Julius foi solto no mesmo dia. O delegado culpou a justiça e a legislação brasileira pela soltura. Depois, olhou para um auxiliar, um inspetor de cabelos brancos, e perguntou com uma candura que até hoje se revolve na minha memória:

– Será que ele rouba livros pra ler mesmo?

      Nesse momento surgiu um personagem inesperado e gritou:

– Vidas negras importam. Em 14 de novembro de 1844 negros foram traídos em Porongos. Não se esqueçam dessa infâmia da nossa história.


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