Por que pessoas desafiam o vírus?

Por que pessoas desafiam o vírus?

Vitalismo irracional expõe ao perigo

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      Há quem saia para a rua, em tempos de pandemia, para sobreviver. No desespero. Mas há quem saia de casa, correndo todos os riscos, por querer viver. Isso explica, em parte, praias lotadas em alguns lugares e restaurantes tomados ao menor sinal de abertura. Existem pessoas que parecem não temer a morte e, mesmo informadas sobre os perigos, estão dispostas a qualquer coisa por um naco de “normalidade”. Um desses destemidos, que nos espantam com suas atitudes, alega que quem escala o Everest ou faz uma travessia oceânica solitária também pode morrer e nem por isso fica em casa. De minha parte, acho que escalar o Everest é de uma inutilidade absoluta. De qualquer maneira, o cara que se expõe na altitude inóspita não coloca em risco outros, salvo, talvez, quem o acompanha, com o seu vitalismo transbordante e incontido. Não é mesmo?

      Diz-se que quando se tem vinte anos de idade todo mundo se considera imortal. Não tenho convicção de que a juventude esteja disposta a contrair o coronavírus por uma balada. As imagens de gente aglomerada por toda parte suscitam questionamentos: por que mesmo alguém, nestes dias de medo, sai correndo de casa para ir ao cabeleireiro? Por que cargas d’água uma pessoa, no primeiro dia de flexibilização da quarentena, vai a uma loja examinar uma bolsa ou a uma concessionária pedir informações sobre carros que ainda não pretende comprar? Por que, enfim, um sujeito entra numa fila de sorveteria com o inverno chegando? Cada um tem os seus motivos. Os seres humanos são complexos e com necessidades que nem sempre parecem reais a quem tem outros interesses. O problema é a singularidade do momento. Nunca imaginamos que algo semelhante pudesse nos acontecer.

      Ficamos sem tudo o que preenchia o nosso cotidiano. Perdemos a nossa rotina tão meticulosamente construída e em relação à qual nos permitíamos reclamar com estudado enfado: ir ao ambiente de trabalho, passear no shopping, olhar futebol na televisão, ver novela nova, correr no parque, malhar na academia, sair para jantar em grupo, beber com os amigos num bar apertado e barulhento, assistir a show no sábado à noite, ganhar e distribuir abraços apertados ou não, viajar para visitar familiares em idade avançada, receber visitas, fazer festa por tudo e nada, pegar um avião para algum lugar pelo prazer de respirar outros ares, ir a um estádio de futebol, participar de um congresso.

      O isolamento provoca angústia, depressão, ansiedade e sensação de sufocamento. Quem desejava ter mais tempo para a família descobre que o balanço entre sair e voltar garantia a estabilidade doméstica. Quem andava louco para se aposentar acredita agora que ainda tem contribuição para dar no trabalho. Quem já não ia a bar, como eu, sente saudades dos tempos em que se podia jogar conversa fora com a galera por horas a fio. Todo mundo se encontra no virtual e elogia o universo tecnológico. O desejo do presencial, contudo, provoca vertigens, fantasias, desejos e transgressões. O vitalismo suicida empurra os seres humanos para fora. A razão luta para mantê-los em casa. Assim.


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