Por um punhado de versos
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Quanto tempo faz que eu não vejo as estrelas? Desde que cresci. Quando foi isso? Não sei, desconfio, imagino. A gente vira adulto de um minuto para outro. É uma ilusão pensar que vem aos poucos. Comigo aconteceu, quem sabe, numa noite de 1980 quando olhei para o céu e só vi uma placa de chumbo. Digo isso sem melancolia embora não seja capaz de me mostrar convincente. Talvez se devesse caracterizar a idade adulta como aquela em que as estrelas perdem o brilho por exaustão do olhar do observador. As estrelas nas grandes cidades não têm a intensidade que exibem nas aldeias, vilarejos e povoados, esses lugares onde a inocência vive em liberdade incondicional. Resta-nos o alaranjado do poente e o banho de luz do amanhecer. O homem que vê o tempo passar redescobre a fulgurância passada das estrelas infantis.
Estou cada vez mais intolerante à incerteza. Tento agarrar o futuro para impedi-lo de se fazer presente. As estrelas brilham nos céus da infância como um imaginário, aquilo que torna mágico o mundo. Sentimento que traduzi há muito tempo com uma golfada de espanto:
Biografia
Eu estive lá...
Entre duas torres
Depois do esquecimento,
Na manhã que caía aos poucos,
Nessa ausência plena
Que é o ressentimento.
Longe dessa presença vazia
Que pena como uma sangria,
E sangra como uma orgia,
Entristece feito a poesia,
Embarcação de loucos.
Eu estive lá...
Entre duas torres,
Esparramando sombras,
De sol a sol,
Na imensidão do nada,
Saindo do tempo
como uma lâmina cortada.
É essa estranheza que busco. Essa brecha que exige dos olhos uma penetração quase impossível. Essa expressão enigmática dos mais profundos temores, aqueles que chegam à flor da pele e naufragam quando nos apressamos pelas ruas deixando de lado tudo o que fascina. De repente, uma parte disso me escapa com uma estrela que morre.
Infância
Eu perseguia imagens no céu
Moldando nuvens com o pensamento.
Vez ou outra, na clausura do tempo,
Surgia o eterno num fragmento.
Então o azul e o verde do campo
Fundiam-se como uma mata densa,
Ritmando uma luz nua e intensa,
Até cair dos meus olhos o véu,
A lua, o brilho, o tampo.
Eu me extraviava no infinito,
Iluminando estrelas ao léu,
Apagando o dia,
Até onde a noite,
Essa musa vazia,
Se esconde do futuro
Na memória do escuro.
Quem escreve jamais deve se levar a sério. Essa é a tarefa do leitor. Eu me contento em travar minhas batalhas com a memória, com o tempo e com o cotidiano. Sou o cronista do tempo da morte da poesia, aquele que sabe, por intuição, que a poesia renasce como um fogo trêmulo quando as estrelas se acendem nas lembranças de quem as conheceu livres. Toda poesia nos dias de hoje é uma confissão de incontinência verbal, a parte maldita que se liberta das amarras da razão para expressar o que se deveria calar, o anacronismo do poeta.
Nas entranhas feitas de negro
Apalpo a aspereza das páginas
Enquanto um estranho me fita:
Seus olhos me dizem esse algo
Que nunca saberei, isso eu sei.
Há algo que se perdeu num trem,
Algo que eu procuro e não vem,
Uma inocência escura e sem bem,
Face pura da infância em Palomas.