Poucas em boas em tempos extremos

Poucas em boas em tempos extremos

Polarização permanente satura

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      Foi bem nessa hora que eu disse: não aguento mais bolsonaristas e antibolsonaristas obsessivos. Over! Meu amigo de conversa por aplicativo era bolsonarista, que os tenho. Gracejou: “Como viverias sem nós?” A minha resposta estava na ponta da língua: “Posso viver do sol, que, como dizia o outro, não faz discursos nem ama”. Meu amigo, bolsonarista leitor Machado de Assis, retrucou: “Isso é lá no Quincas Borbas!” Eu ri. E perguntei: preferias o homem ou cachorro, que os dois tinham o mesmo nome? Ele não hesitou: “O dono morreu cedo. Conheci melhor o cão”. Eu havia escrito que meu amigo, apesar de bolsonarista, lia Machado de Assis. Mudei para que ninguém se ofenda. É assim que se perde uma piada.

Nesse momento, precisamente, entrou na sala virtual uma amiga antibolsonarista. Queixou-se. De quê? Do sol e do Bolsonaro. Disse que o primeiro não andava mostrando constância e que o segundo jamais iluminaria os seus dias tão carentes de futuro. Vibrou, porém, com a possibilidade de vitória de Joe Biden.

      Falei que isso dava crônica ou riso crônico. Para minha surpresa, concordaram. Pela primeira vez desde 2018. Disseram em coro que se eu escrevesse o que estava ouvindo seria odiado pelos dois lados. Observei que não seria novidade.

Minha amiga me consolou:

– Você é uma lenda – disse ela, antibolsonarista leitora de epopeias.

– Uma legenda – corrigiu o amigo, fazendo de mim uma frase curta.

      Concordei pensando e citei uma passagem de “Max e os demônios”, do escritor Gilberto Scharwstmann, médico quando não está inventando personagens deliciosos: “Édipo responde que é o homem, pois ele engatinha em quatro patas na infância, caminha com duas pernas na fase adulta e com ajuda de uma bengala na velhice. Édipo foi o único a acertar a resposta e salva sua vida e a de todos os cidadãos de Tebas. Melina disse-me, certa vez, que essa história era inspirada num episódio vivido por ela, inclusive a pergunta quem tinha formulado, pela primeira vez, foi um dos seus amantes, um senador grego cujo nome ela se negava a dar – algo como Juremius Machadus Silvius”.

      Durante cinco minutos não se falou de política. Na nuvem formada pela nossa conversa não apareceu a palavra polarização. Em compensação, cresceu o termo quarentena, que anda quase sempre acompanhado por cloroquina. Temendo que a trégua não durasse ou que um deles conseguisse pronunciar algo como dexametasona, adotei a estratégia do Coudet com o Inter no segundo tempo: recuei. Até tomar o gol nos acréscimos. Só pude me consolar dizendo que era inevitável.

– Eu me retiro – disse.

– Para onde? – Falaram juntos, sem discordância, salvo de volume.

– Para meus alfarrábios. Tenho oito livros inacabados.

– Não leia tanto – aconselhou minha amiga.

– Não escreva tanto – sugeriu meu amigo.

      Levantei os olhos da tela: não havia sol. “Parece decreto do Bolsonaro”, ironizou a minha amiga: “Sai de manhã, cai no começo da tarde”. Meu amigo aproveitou a deixa. Era tudo o que ele precisava:

– Se até o sol recua, por que não o presidente?

      A conversa tomou esse rumo. Comparações a pino. Eu me sentia o próprio Édipo: ou eu os decifrava ou eles me devoravam. Esbocei uma reação. Era tarde. Eles já discursavam como dois senadores sem público. Larguei tudo e fui escrever (ou reescrever) os maiores clássicos da história. Só por distração.


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