“Pretos, fora”

“Pretos, fora”

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Eu sempre quis pensar em Porto Alegre como uma cidade hospitaleira, meio interiorana, meio metida a cosmopolita. Adorava dizer que era um lugar bom para se morar, nem grande nem pequeno demais. Falava com orgulho que era uma cidade menos violenta do que Rio de Janeiro e São Paulo. Aos poucos, a capital gaúcha foi nos desmentindo sem qualquer constrangimento. Cada um tem um caso de violência pessoal ou na família para contar. Multiplicamos os buracos das nossas ruas e as brechas em nossa narrativa.

O Rio Grande do Sul já mentiu para si mesmo se apresentando como um Estado menos racista que os demais do país. Chegamos a inventar uma “democracia campeira” na qual senhor e escravo viveriam como iguais. Já se ousou dizer que, durante a escravidão, éramos menos perversos com os escravizados. Pura ficção. Arsène Isabelle narrou o procedimento da cura de ferimentos de escravos por senhores do Rio Grande do Sul: “Com sal e pimenta, sem dar-lhes mais cuidado do que o que se presta a um animal”.

O olhar de um estrangeiro é sempre fascinante e revelador. Já fomos descritos por tantos viajantes, entre os quais Auguste de Saint-Hilaire. Mesmo nesta nossa época de globalização, neste mundo cada vez “menor”, a visão do outro é desconcertante. Nosso cotidiano “natural” aparece subitamente como um traço da nossa cultura, uma construção histórica, uma possibilidade, uma estranheza. O problema também é que para nós estrangeiro é todo mundo que não tenha nascido aqui, inclusive os demais brasileiros.

Saint-Hilaire, em 1821, horrorizou-se com o frio dentro das nossas casas. Não era razoável para ele que não houvesse aquecimento mesmo em muitos lares de pessoas bem aquinhoadas. Ainda não resolvemos totalmente esse pequeno problema. Se não é fácil explicar o Brasil para um estrangeiro cartesiano ­– confesso que eu mesmo fico cada vez mais em dúvida na medida em que tento esclarecer aquilo que eu mesmo ainda não entendi –, também não é simples explicar o Rio Grande do Sul para quem “vem do Brasil”. Talvez o que nos una ao país sejam os preconceitos, entre os quais o racismo.

Um relatório do IPEA, de 2017, permitiu ao UOL fazer a seguinte manchete: “Porto Alegre lidera desigualdade entre negros e brancos no país”. Outro jornal destacou que, no Rio Grande do Sul, brancos ganham em média 59% a mais do que negros. Na época, houve surpresa e até indignação com esses dados. Depois, tudo seguiu normalmente. A discriminação e a desigualdade não se abalam com um simples conjunto de dados estatísticos.

Uma amiga, carioca, negra, mudou-se para Porto Alegre. Ainda está na fase de adaptação. Não somos muito receptivos com os recém-chegados. Ela foi ao centro da nossa cidade onde se deparou com um sujeito repugnante, que fez a saudação nazista diante dos seus olhos esbugalhados e disparou:

– Pretos, fora!

Isso aconteceu há poucos dias, em plena campanha eleitoral. Minha comprou um spray de gás de pimenta. É agora a sua proteção contra os nossos extremistas. O horror exibe-se em praça pública sem a menor vergonha.

 

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