Prosa e poesia: essas palavras

Prosa e poesia: essas palavras

Por uma estética do descobrimento

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      Minha primeira coluna em jornal tinha título: “Essas Palavras”. Era uma página semanal. Aprendi que se pode dizer pouco com muito e muito com pouco. Eu era jovem. Tinha muito a dizer. Com o passar dos anos, fui ficando mais econômico, não por sabedoria, certamente por cansaço. Ainda falo muito, em forma de pensamento, o que livra a humanidade das minhas digressões e me permite ser loquaz sem culpa. 

*

Medo do escuro

Cresci em vastos pátios amarelados

Ao sul dos quais começava o infinito

Estrelas eram luzes com lugar certo

Trens apitavam antes da curva

Aves migravam sem se despedir

Heras subiam por ásperas paredes

Minha mãe me chamava ao entardecer:

“Entra, menino, que a noite te pega”.

*

Horizonte

Na guerrilha dos fracos e persistentes

É preciso saber ficar na trincheira,

Não para dizer tudo o que se pensa,

Mas para desfechar ataques precisos.

Cada vitória é também uma derrota

Cada derrota um recomeço necessário

Correm as horas como pesadelos

Morrem as plantas de monotonia

Cada palavra dita é uma travessia.

*

 

Epitáfio

Hoje comi peixe no Mercado Público

Cocei a barriga como um bronco,

Lambi os beiços e até comentei:

A poesia morreu. Está enterrada.

Depois, voltei para casa de ônibus

Lendo os poemas colados no vidro

Acho que adormeci e morri

Encontrei Deus depois do túnel

Ele me disse: bem-vindo, poeta

Então, desci, subi apressado,

Espichei-me no sofá para repousar,

Quem sabe sonhar com Deus e o paraíso,

Um paraíso de poetas frescos, leves,

Que sobem pela frente e pagam passagem.

A luz que filtrava pela janela era glauca

Perdi a vida procurando palavras no dicionário

Agora, aposentado, jogo tudo fora com as espinhas

Salvo essa claridade que indica o caminho

Quando eu morrer, quero peixe, poesia e muito sol.

*

Toda poesia

 

Todas as formas podem ser belas:

A poesia musical, formal, oral,

Aquela que se esconde ou que responde.

Eu quero uma poesia expressiva,

Colorida, fulgurante, compreensiva,

Uma poesia figurativa que diga algo,

Mesmo que seja algo para me entristecer.

Uma poesia que faça sentido,

Mais do que isso, faça sentidos,

Real, hiper-real, transfigurativa.

Poesia que diga mais do que a palavra escrita

Com aquela imagem que talvez não tenha sido dita:

Descubra, destape, revele, desvele,

Faça ver o que está oculto diante dos olhos,

Uma poesia que incendeie a memória,

Destrave a imaginação, inunde o cotidiano

E nunca tenha medo de ser entendida,

Essa poesia que me morde a língua

Se não a concebo enquanto morro.


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