Qual a graça?

Qual a graça?

Por que um homem ao falar da violência contra mulheres?

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 Sabe-se deste a antiguidade que certas coisas não têm explicação. Mesmo assim, talvez pela perplexidade que provocam, tentamos desesperadamente encontrar uma luz na escuridão do absurdo. Estou sendo abstrato? Reconheço. É que se trata de algo chocante: por que mesmo um promotor do Ministério Público caiu na risada ao dizer que a “mulherada está apanhando pra caramba” na pandemia? Ele não falou caramba. Usou um palavrão. Depois de falar isso, alinhavou uma justificativa para a violência doméstica na quarentena: o fato de se passar muito tempo juntos e de que isso leva a descontrole por nada.

      Os homens que conversavam com o promotor também acharam graça. Em entrevista, depois que a fala repercutiu o promotor acusou quem o gravou de ter registrado “apenas o que interessava”. O mensageiro é sempre culpado pela mensagem quando esta revela o que o emissor gostaria de compartilhar apenas com seus parceiros coniventes. Pensei nos ensinamentos de Confúcio. O que ele recomendava? Cinco pilares absolutamente simples: sinceridade, retidão, obediência, disciplina, autocontrole e honestidade. Seguir essas determinações era o caminho para a felicidade, que significava não enganar as pessoas, não se iludir, não esperar muito dos outros, não perder tempo pensando na morte, ter confiança. Confúcio seria o autor desta conhecida fórmula: Dê um peixe para um homem e ele comerá um dia. Ensine-o a pescar e ele comerá por toda vida”. Se os rios não estiveram mortos.

      O promotor da risada pusilânime pisou na bola em relação a todos os parâmetros da filosofia de vida confuciana. Quem ele pensava enganar com sua pretensa explicação? Depois do desembargador de Santos, aquele que não usava máscara, mas viu a sua máscara cair diante de uma câmera ao dar carteiraço no agente que o multava, temos o promotor cujo machismo escorreu feito uma gosma enquanto ele ria com gosto para divertimento dos seus companheiros. O sujeito recorreu ao formulário padrão: alegou que estava numa conversa informal de intervalo, que sua declaração foi tirada de contexto e que tomará medidas jurídicas contra quem o flagrou em situação, digamos, obscena.

      Um dos interlocutores do promotor riu e observou: “É, não justifica, né, mas enfim...” O que pode significar esse enigmático enfim? O desembargador de Santos também falou grosso no começo do rolo. Depois, baixou a bola. Está afastado das funções mantendo a sua remuneração. Será que o destemido promotor do riso frouxo também enfrentará uma punição inicial com esse espantoso rigor? Em “Górgias”, Sócrates, o pensador que fazia pensar, afirma sem medo de parecer ingênuo: “É como digo, Polo; considero feliz quem é honesto e bom, quer seja homem, quer seja mulher; o desonesto e mau é infeliz”.

      Será? Quem ri da desgraça alheia pode ser honesto e bom? Devemos considerar que foi apenas um lapso? Ou o imaginário vasou até inundar o país com mais uma fala indecorosa? Confúcio e Sócrates talvez jogassem a toalha nos dias de hoje. O pessoal só se conhece quando fala. Aí já é tarde para fechar a torneira. Só resta culpar o celular.

   


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