Quando ainda havia ilusão

Quando ainda havia ilusão

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Imundou.

Sujos, os homens tomaram rumo. Mundo sem porteira.

Foram-se pelas estradas que desterram. Porcos castrados no chão batido. Comecei a rir.

O sol caía por trás dos eucaliptos, rasgando o potreiro com os últimos golpes brandos das sombras das árvores, e uma aragem incomum para a época, metade de março, embalava os caraguatás na lomba do Alto Grande. A polvadeira levantada pelo trote rasgado dos cavalos engolia seres, barrancos, casas, coxilhas, palavras... castelhanos. Cada sopro desencadeava uma nuvem de cascos. E tome pó e dê-lhe patas.

O trem esganiçado ameaçava partir com um rangido de peças fartas de viagens. O largador corria de um lado para outro na plataforma, esticando os gambitos num esforço lamentável, quase impossível, doloroso. Pernas que não o querem, embora os sapatos tilintem nas pedras mornas do piso, arrancando ganidos de cuscos desempregados. Ferros luzindo em linha reta até a curva do olhar na dobradura do rincão. As léguas não têm repouso, somente canhadas.

E dê-lhe sino e tome espera.

Extasiado, sentia-me levitar. O ar era, por momentos, tão suave e transparente que me tonteava. A festa da natureza embriagava-me de odores e de sentimentos adocicados como um licor de pitangas. Tive vontade de correr de peito aberto pela estrada de areia até ficar banhado de suor. Queria ver as gotas correrem pelo meu pescoço, salgadas, tortuosas, selvagens. Exausto, mergulharia no grande lago em que se transformara o céu. A água celeste apagaria os meus temores enquanto eu nadasse no vazio, com os braços estendidos para o além. Esquecido de tudo, deixei-me acariciar pelas faíscas do entardecer que se misturavam às primeiras barras da noite.

O cheiro de esterco arrancou-me do devaneio.

Por baforadas regulares, entrava pelas narinas dos viventes e espalhava-se pelo corpo até encharcar a alma com uma fedentina de matar corvo enjoado, conforme gostava de dizer dona Carmela. Virei-me de costas para a estação e aspirei o entardecer como se no pampa só existisse a pureza da terra molhada pela chuva dos veranicos de maio. Janguinho, gritou-me a voz casmurra, quase me derrubando do alto da cerca de madeira onde me achava empoleirado, já farto de contemplar a miséria dos bichos e a destreza entre cruel e debochada dos homens. O velho Genésio aproximou-se rengueando, cuspiu o toco do desfiado contra o monte de achas de lenha e pigarreou:

— Quem ri sozinho cria rabo — disse com a voz arranhada. — Cola de redomão. Boa para agarrar carrapicho em campo ruim.

— Melhor uma cola suja do que embarcar como besta de carga atrás de uma máquina de carniça — respondi sem pensar muito.

— Guri — cismou Genésio, coçando a barba rala — quem espia destino de bicho, feito para abate no saladeiro, termina por andar de quatro e mugir triste como boi velho depois da morte do companheiro de canga.

Atirei-me para o chão, raspei o joelho numa lasca de pedra e, impulsionado por uma estranha força interior, pus-me a correr na direção oposta ao Alto Grande. Atravessei a vila em disparada, como se dezenas de varas de marmelo me fustigassem as costas, chamando a noite para dentro de mim, despertando fantasmas, acendendo lamparinas nas baixadas, abrindo minúsculas gargantas escondidas nos pastos secos. No galope, percorri uma espécie de arco até reencontrar os trilhos junto à água irisada onde os sapos pareciam aborrecer-se desde o começo do mundo.

*

Tantos depois, imundou de vez.

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