Que devemos fazer?

Que devemos fazer?

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O bicho está pegando.

Não está fácil para ninguém.

Que devemos fazer?

Morder o cachorro para criar um fato novo?

Sempre tomo o que leio como ponto de partida. Não me sinto na obrigação de ser fiel a nenhum pensamento ou mestre. Ler é interpretar, acrescentar, divergir, intervir. No fundo, adultero tudo o que leio. Sou uma máquina de “desinterpretação”. Meus olhos caem sobre as frases impiedosamente. Gosto acima de tudo das pistas que o pensamento alheio, especialmente o dos grandes filósofos, indicam. A pergunta kantiana, o que devemos fazer, é instigante e deliciosamente simples de ser desviada. Posso fazer algo? Podemos? Posso mudar o curso da minha vida? Podemos alterar os rumos da economia de um país? Durante muito tempo, a política foi considerada a forma coletiva de fazer algo. Havia voluntarismo na ideia de mudar o mundo pelo projeto.

Depois, a economia se impôs como um dogma. O que resta de liberdade? Schopenhauer, outro gênio para ser pilhado e interpretado, fez uma bela frase de autoajuda: “Ninguém pode construir para ti a ponte sobre a qual precisamente tu tens de passar sobre o rio da vida, ninguém além de ti mesmo”. Linda frase de autoajuda. Circular como uma ilusão. Envolvente como um redemoinho. Todo grande filósofo faz autoajuda. Ou, como dizem os franceses, desenvolvimento pessoal. O que posso fazer para construir a ponte sobre o rio da vida cujas águas se agitam sob os meus pés mantidos no ar? Kant mandava agir de forma racional e desinteressada. Era um pensador do dever. O que fazer das paixões, das circunstâncias, dos desejos e das loucuras cotidianas?

Kant estava refletindo sobre os limites à nossa ação e vontade e sobre nossas obrigações morais. Longe de mim querer saber o que de fato pensa um grande filósofo. Sou um reles cronista preocupado com o rio da sua vida, com as pinguelas da existência e com o que ainda podemos fazer para melhorar o quintal da nossa casa. Sou daqueles que andam por aí fazendo perguntas esquisitas do tipo: por que o mundo dos homens é tão mal organizado enquanto a natureza é tão bela? Estou ensimesmado com a felicidade. O que podemos fazer para ser felizes pressupondo que sejamos capazes de definir essa tal de felicidade?

Três correntes duelam. A primeira estimula: corra atrás dos seus desejos. A segunda recomenda: planeje bem suas ações, não corra riscos desnecessários, considere suas forças antes de se aventurar. A terceira, pretensamente mais sábia, aconselha: não sufoque os seus desejos, mas também não perca o controle sobre si, não se deixe escravizar pelas paixões. Pobre de nós: temos de realizar nossos desejos, não perder o controle, correr riscos para fugir do conformismo e da zona de conforto, calcular bem nossas forças para não entrarmos em barca furada, adotar estratégias adequadas, fugir da camisa de força dos planejamentos rígidos demais, correr e ficar, arriscar e não colocar tudo a perder, ousar sem irresponsabilidade.

Socorro!

O filósofo popular ensina suavemente: “Deixa a vida me levar”. A vida leva. Mas de que jeito? Para onde? A que preço? E se a felicidade for justamente nunca se perguntar fico ou vou? Que fazer?

Na falta de certeza, apostar na dúvida.

 

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