Quem se lembra da gripe de 1968?

Quem se lembra da gripe de 1968?

Vírus matou um milhão de pessoas no mundo

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      Quem se lembra de uma gripe, surgida na China, em 1968, que matou cerca de um milhão de pessoas no mundo até 1970? Será que nossos leitores mais vividos têm alguma informação sobre esse acontecimento de quando eram jovens? Alguma notícia terá saído em nossos jornais? Naqueles tempos de AI-5, hippies, festivais de música, prisões, tortura, execuções e desaparecimentos alguém terá prestado atenção num vírus que dizimava multidões pelo mundo levando hospitais ao colapso? A memória não costuma ser o nosso forte. Talvez seja uma forma que encontramos para resistir e seguir em frente num triunfo do vitalismo.

O jornal francês “Le Monde” fez um podcast sobre esse assunto para repercutir uma reportagem de fôlego realizada para desenterrar essa tragédia que desapareceu do radar. Como se sabe, a gripe espanhola de 1918 não começou na Espanha, mas nos Estados Unidos. A gripe de 1968 recebeu o nome de Gripe de Hong Kong, mas não iniciou lá. Em duas vagas, o H3N2 matou, só na França, 35 mil pessoas, atacando principalmente os idosos. Por incrível que pareça, franceses que tinham entre 20 e 30 anos de idade na época não se lembram de coisa alguma. Até mesmo entre velhos médicos a memória se apagou completamente. A pandemia do coronavírus é a primeira de gripe declarada pela Organização Mundial da Saúde desde então. O passado voltou com tudo.

      A repórter Raphaëlle Rerolle penou para encontrar um estudante de medicina daquele tempo que lhe descrevesse a situação nos hospitais. Resumo da pandemia: os jornais quase não se interessavam pela mortandade, o presidente da República não fazia declarações, o tema ficava restrito ao Ministério da Saúde e aos hospitais. Como se explica isso? Rerolle fala em outra relação com a morte, com as epidemias, com a opinião pública e com a nação de saúde coletiva. As revoluções juvenis comportamentais de 1968 chamaram mais atenção do mundo do que o vírus devastador. O coronavírus encontrou o planeta pronto para uma atenção total. Nunca antes uma questão de saúde concentrou tanto o olhar mundial de políticos, jornalistas e cidadãos de todos os países.

      Chegou-se a criar uma vacina contra o H3N2, que teria uma eficácia de, no máximo, 30%. Ela não foi produzida em massa por medo de encalhe e prejuízo. O perigo já havia passado. A vida seguia. Resgates dessa gripe mortífera têm falado em “epidemia discreta”. Sem dúvida, esse esquecimento diz muito sobre a humanidade e seus comportamentos variáveis conforme as épocas e culturas. Tudo parece questão de perspectiva. A BBC Brasil recuperou o terrível episódio com este título preciso: “Última pandemia de gripe, em 1968, matou 1 milhão”. Mas desenvolveu o tema paradoxalmente assim: “As pandemias de 1957 e 1968 foram relativamente leves em comparação à gripe espanhola, que matou até 50 milhões de pessoas entre 1918 e 1919 e infectou cerca de 40% da população mundial”. A história das pandemias traz um consolo: todas passaram, a humanidade sobreviveu. Quantas vidas, porém, ceifadas!

Para continuar, a humanidade esquece os seus pesadelos.

 

 


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