Quem terá a chance de viver?

Quem terá a chance de viver?

Médicos escolhem quem irá para UTI

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      O que se lerá aqui é um pequeno conto em tempos de colapso do sistema de saúde na pandemia. Alguns talvez prefiram chamar de crônica. Outros, de absurdo. A ficção verossímil, já ensinava certo grego que nunca deixa de ser citado, trata do que poderia ter sido. Ou do que poderá ser. Personagens: Antônio, 58 anos, advogado, diabético, cardíaco; Camila, médica, 37 anos, atuando na linha de frente contra a Covid-19; Thomaz, 33 anos, jornalista, saudável, defensor da ideia de que não se pode ficar chorando em casa os estragos do coronavírus, pois a vida segue e é preciso lutar e tocar em frente.

      Antônio refugiou-se no home-office como quem se agarra ao possível. Completou onze meses de isolamento. Aos poucos, cortou até as lentas caminhadas no parque. Ele e a mulher, Anita, só saíam de casa para ir a supermercado, médico e farmácia. Camila, acostumada a atuar em UTI, tomou um baque: trabalhar em UTI Covid passou a exigir dela uma fortaleza emocional jamais pensada. Entre perdas crescentes e altas comemoradas com lágrimas, ela se viu impotente. Thomaz foi para a praia. Para ele, o exagero dos ‘apocalípticos” teria passado dos limites. Determinado a não perder suas liberdades individuais, sem máscara nem isolamento, sempre disse:

– Ninguém me mantém em cárcere privado.

      Para Antônio o governador deveria impor medidas a serem respeitadas por todos e não flexibilizadas em função da pressão de uns e outros. Para Camila o lockdown, em alguns momentos, é o único remédio disponível. Para Thomaz a economia não pode parar e não se deve ceder diante do mimimi dos medrosos. Três destinos que se cruzariam. Antônio sentiu os primeiros sintomas alguns dias depois da ida a uma farmácia. Thomaz sentiu falta de ar na praia onde circulava sem medo. Deram entrada no mesmo hospital, no mesmo dia, aos cuidados de Camila.

      A situação de ambos se agravou rapidamente. O quase idoso com comorbidades e o jovem forte e saudável foram dominados pelo vírus com a mesma violência, como se não existissem diferenças entre eles. Antônio chegou macilento e pálido. Thomas, bronzeado. Sim, tem muito de caricatura neste case plenamente possível de acontecer, se já não tiver acontecido. As internações estavam no pico. Chegou o momento em que o alarme foi acionado: só havia um leito de UTI disponível. Coube a Camila, em conversa com os colegas, a decisão cruel: a quem destinar o leito restante, Antônio ou Thomaz? A moça balançou. O seu coração pendia por Antônio. A sua visão das coisas também. Os protocolos não deixavam dúvida: privilegiar quem tem mais chances de sobreviver.

      Thomaz obteve o leito e o respirador. Foi entubado. Salvou-se. Continua negando a dimensão da pandemia. Antônio morreu por falta do atendimento que poderia ter-lhe preservado a vida. Um amigo de Thomaz tomou conhecimento da história. Tudo vaza neste país desnorteado. A sua conclusão foi surpreendente. Não se fixou no paradoxo da história. Não questionou alguma injustiça do “destino”. Limitou-se a dois comentários muito curiosos: “Como saber quem foi à praia ou não” e “mais uma prova de que o isolamento não serve para coisa alguma. Pegou igual”.


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