Racismo americano: pese o gado

Racismo americano: pese o gado

As mãos sujas do capitalismo dos Estados Unidos

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O livro que precisa e merece ser lido tem um duplo título: “A metade que nunca foi contada: a escravidão e a construção do capitalismo norte-americano” (Paz & Terra), de Edward E. Baptist (foto). É um calhamaço de mais de 500 páginas. Esfrega verdades na cara dos racistas e dos relativistas a cada linha. Fulmina o argumento mais canalha que existe, o de que eram os valores da época: “Os afro-americanos sabiam muito bem o que pensavam a respeito da expansão da escravidão”. Eu mostrei isso em dois livros: “História regional da infâmia: o destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras” (L&PM) e “Raízes do conservadorismo brasileiro: a abolição na imprensa e no imaginário social” (Civilização Brasileira).

      Baptist conta a história de uma negra chamada Vênus que, “empurrada para o caixote de leilões por seu dono”, refugou orgulhosamente. Dona da sua língua, cortou a fala do leiloeiro com um grito constrangedor: “Pese o gado”. Mesmo os escravistas mais hediondos precisavam lidar com este embaraço: como justificar a propriedade de um gado especial falante e capaz de jogar verdades na cara dos donos? Nos tempos que correm, uma obra como a de Edward Baptist é ouro. O resto é entretenimento água com açúcar, brinquedinho de adultos para passar o tempo sem ter de encarar a dureza dos fatos.

      Não faltam relativizadores incultos desse passado horrendo. Baptist observa: “A migração forçada ensinou as pessoas escravizadas a chamarem a escravidão de roubo, e isso as levou a tomarem medidas extremas para escapar”. Infelizmente o sistema era tentacular. O cara que diz, “negros também tiveram escravos”, tenta justificar nos dias de hoje a infâmia branca de um passado não tão distante assim. Brancos sabiam que praticavam algo abominável. Alguns, poucos, reagiam, mas, segundo Baptist, “a maioria achava maneiras de se acomodar diante do que via, de varrer os fragmentos inconvenientes para baixo do tapete”. Não era “normal” ter escravos.

Era um absurdo tornado conveniente.

      Quantos lerão esse tijolo espetacular? O presente continua a repercutir esse passado infame. Fechemos com Edward Baptist: “Os brancos do Sul construíram monumentos aos generais derrotados na guerra pela escravidão, comemoram os velhos tempos das fazendas e escreveram histórias nas quais insistiam que o objetivo da guerra fora defender seus direitos políticos contra um Estado opressor. No último dos objetivos, foram tão bem-sucedidos que convenceram a maioria dos norte-americanos brancos, incluindo a maioria dos historiadores, de que a escravidão tinha sido benigna e de que os ‘direitos dos estados” haviam sido a causa da Guerra Civil”. Essa narrativa, repetida em sala de aula, era considerada imparcial, neutra, sem partido ou ideologia.

      Quando se lê esse tipo de grande livro, as perguntas que surgem são sempre as mesmas: como os negros conseguiram “perdoar”? De onde tiraram tanta grandeza para seguir em frente sem pedir vingança a cada segundo? Quando se saldará a dívida com esses negros sacrificados?

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Enquanto isso, no Brasil, o "gado" vai às ruas para resistir ao látego dos donos do poder.


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