Reflexões sobre os povos da areia

Reflexões sobre os povos da areia

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Sol e sombra

 

     Chama a atenção, ao longo do tempo, a aleatoriedade de certos comportamentos humanos. Se não for isso, talvez se possa falar em disparidades históricas. Aquilo que vale num lugar e numa época, não vale em outro e noutro tempo. Nenhuma novidade. Mesmo assim, a tendência é cada cultura se imaginar permanente, racional e exemplar. Passemos do abstrato ao concreto como o manda o manual.

Quando eu era menino no interior, a norma era escolher a sombra. Se a temperatura passava dos 30 graus, todos corriam para as frondosas sombras das árvores. Já existia, evidentemente, o costume de buscar uma boa fonte de água para se refrescar. Valia rio, arroio, riacho, lagoa, açude, barragem ou sanga. Éramos, por força da natureza, uma cultura da água doce. Bom lugar era aquele que associava sombra e água fresca. Eu tinha certeza de que era um padrão universal. Não imaginava alguém ao sol.

Ao final da adolescência, fui para a cidade grande. Em seguida, conheci o mar. Até hoje me chama a atenção esse hábito típico das culturas marítimas, acho: quando a temperatura vai ao máximo, todo mundo corre para o sol. Milhares, até milhões, de pessoas na areia escaldando-se ao sol, algumas sob guarda-sóis asfixiantes. Passado quase 40 anos, ainda não me acostumei com essa irracionalidade. Muitos nem entram no mar. Que loucura!

Nesta virada de ano, em Copacabana, no Rio de Janeiro, observei, mais uma vez, esse estranho comportamento humano. A temperatura passou dos 40 graus. O sol impôs-se como um ditador. A sombra das árvores, na avenida Atlântica, do lado dos prédios, estava uma delícia. Incrivelmente refrescante. Quem estava interessada nisso? Ninguém. A massa amontoava-se na areia abrasiva. Outra parte, quando esfalfada, corria para ambientes fechados e com ar-condicionado. Nada de sombra.

Pude concluir que a sombra é uma tecnologia ultrapassada ou típica das culturas de água doce. É verdade que no nordeste brasileiro muita gente fica na praia à sombra de coqueiros. Deve ser um vestígio do passado. Comecei a refletir sobre outros traços distintivos das culturas do sol e da sombra. Os primeiros dormem tarde, acordam tarde e passam a tarde queimando. Os últimos dormem mais cedo, acordam cedo e sesteiam. Ou, ao menos, faziam isso. Juro que ouvi esta conversa:

  • Vamos para a areia?

  • No final da tarde, depois que o sol baixar.

  • Enlouqueceu!


Certamente era um recém-chegado de alguma localidade típica da cultura de sombra e água fresca. A violência diurna e os engarrafamentos têm criado um novo hábito entre os cariocas sempre dispostos a lançar moda: pegar praia à noite. Parece que assaltante praiano no Rio de Janeiro prefere atuar ao sol. As sombras da noite tiram-lhes o vigor. Sou da sombra. Se o sol sobe, eu desço.

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#Partiu 2017 e hábitos praianos

 

     Dada a largada, ninguém mais segura o ano. Na terceira manchete de tragédia já nos acostumamos com o novo dígito. Muita gente respira. Acabou o foguetório. Fim de ano causa muita dor. É tempo de solidão e medo. A fuga para as praias ajuda a controlar a ansiedade. Aproveito para observar os povos do mar. Melhor, os povos da areia. Há dois grandes grupos: os que entram na água e os que ficam só na beira. Os que entram na água se dividem em a) que bebem cerveja antes do mergulho b) que bebem ao sair c) que bebem cerveja ao entrar e ao sair.

Os que ficam só na beira preenchem duas categorias: 1) os que torram no sol 2) os que ficam sob o guarda-sol. Nada impede que essas classes se misturem. Adoro praia. O inverno me deprime. Em agosto, sinto tontura de tanta saudade do verão. À medida que dezembro se aproxima eu começo a sonhar com praia e sol. Faço planos mentais. Todo ano, quero alguns dias no Rio de Janeiro (praia com cidade grande, multidão, teatro, shows e cinema) e alguma nova praia deserta (nacional ou internacional). Quanto mais velho, mais sinto frio e mais gosto de ir à praia.

Meus únicos problemas com a praia são o protetor solar, a areia e o sol. Por mim, iria à praia pelas seis da manhã, mas nesse horário só consigo ir ao banheiro. Outra possibilidade é o final da tarde. As convenções sociais, no entanto, estabelecem que nesse horário só vale caminhada. A hora da praia mudou muito conforme as épocas e as culturas. Hoje, varia entre dez da manhã e cinco da tarde. O pico se dá entre dez horas e meio-dia.

Passar protetor é uma forma suave de tortura. É preciso enlamear cada parte do corpo. Sempre pode escapar um ponto propício a uma queimada infernal. Feita essa operação meticulosa, vem a segunda etapa: avançar até o teatro dos acontecimentos, alugar a barraca (guarda-sol) e as cadeiras. Em seguida, cabe escolher um lugar privilegiado suficientemente perto da água para fugir do abafamento, mas longe o bastante para não ser inundado a qualquer momento. Qualquer erro pode ser fatal. Nos melhores dias, a temperatura passa dos 40, cada milímetro de areia é ocupado por uma família ampliada, o sol arde como um incêndio e dois caras falam de duplas sertanejas.

No primeiro dia, eu me jogo na meleca. Passo protetor como quem se prepara para salvar a humanidade. No segundo, remancho. Rezo que tenha terminado. No terceiro, fico trancado no banheiro, alongo o banho, espicho o café da manhã, digo que tenho de responder um e-mail urgente, perco o celular, coisas assim. No quarto dia, torço que chova. É incrível como eu gosto de chuva na praia. Ou, ao menos, de um tempo nublado que permita ler na areia sem barraca nem sol. Nem a família ampliada. Sabem a definição de família ampliada, não? Avô, avó, pai, mãe, dois filhos, o namorado do filho, a namorada da filha, cachorro, o ex da filha, a ex do filho e um primo.

Sou da turma que não entra no mar, salvo em praias com piscinas naturais, e não bebe. Em outras palavras, um ser estranho na areia. Suo embaixo da barraca, encolhido numa nesga de sombra, tentando evitar a invasão do sol. Acabo colado ao pau do guarda-sol, que, não raro, desaba. Sempre chego no hotel com uma queimada braba num pé, nas costas ou no ombro. Sem sair do bunker plastificado ou de lona. Já tentei ler jornal na praia. A cultura do standard, jornalão, me fez desistir. Uma vez, quase acertei o nariz do vizinho ao dobrar uma página da Folha de S. Paulo em busca da coluna do Jânio de Freitas. O atingido era meio coxinha, odiava o Jânio e pediu briga.

Amo as praias nordestinas. Gosto de fazer algum passeio pitoresco. Sempre aparece um guia que oferece:

– Vamos fazer um passeio, doutor?

– Para onde?

– Temos a pousada onde o Luciano passa as férias?

– Luciano?

– Huck.

– Ah, bom! E que mais?

– Podemos almoçar onde Ana Maria comeu camarão.

– Ana Maria?

– Braga.

– Não tem outra coisa?

– O senhor prefere outra emissora?

Sou louco por praia. Gosto das desertas e das repletas de gente. Vou de Copacabana no Ano Novo a São Miguel dos Milagres, em Alagoas, e Carneiros, em Pernambuco. O meu problema é o sol quente. E aquela areia grudando no corpo. Sem contar aquele mundão de gente. Ou aquela falta de aglomerado. Perto do meio-dia, reflito. Sol a pino. A sombra fresca do outro lado da avenida. A areia quente coberta de tetos artificiais. É hora de passar mais uma camada de meleca. Claro, tem as gatas.

Homens casados e fiéis não devem olhar as gatas. Nem fica bem nestes tempos de politicamente correto. Talvez eu devesse aderir aos óculos escuros. Já notei que homens de aliança sempre se protegem com lentes escuras. Há uma correção entre essas duas variáveis. É estatístico. Na virada deste ano eu estava na praia. A previsão do tempo dava 80% de chances de chuva no domingo. Vibrei moderadamente, que não fica bem comemorar chuva na praia. Fez um sol de rachar. Não dá para confiar na meteorologia carioca. Nas areias quentes de Copacabana, eu anotei:

– #partiu 2017! É praia e sol.

 

 

           

 

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