Relatos da meia-noite

Relatos da meia-noite

Dois filmes que se completam

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      Sempre estive mais para faroeste do que para ficção científica. Talvez por isso tenha gostado mais de “Relatos do mundo”, de Paul Greengrass, com Tom Hanks, do que de “O céu da meia-noite”, de George Clooney, com ele mesmo no papel principal. Os dois filmes, contudo, tem algo em comum. Em cada um deles um homem maduro deve fazer uma travessia em condições climáticas extremas com uma menina encontrada por acaso. Nos dois, o esquema narrativo da travessia se aproxima: o percurso começa em “Relatos do mundo” numa carroça. Termina a pé. Em “O céu da meia-noite” a jornada inicia num trenó motorizado e também acaba a pé. Uma dupla enfrenta uma tempestade areia; a outra, uma tempestade de gelo. Uma menina não fala a língua do companheiro de estrada; a outra, parece muda ou não pode falar com seu novo amigo.

      Filmes de Oscar usam e abusam de um esquema narrativo: problema – peripécias – superação e desfecho. A gente já sabe como vai funcionar. Sempre dá certo. A imagem da vez é a parceria entre um homem e uma menina. Um homem e um menino seria clichê. O politicamente correto também está em cena. Em “O céu da meia noite”, com a humanidade sendo evacuada da Terra devastada, o chefe de uma missão especial em busca de um novo planeta onde habitar é um negro; a sua parceira é branca. Adão e Eva à procura de um novo mundo. Em “Relatos do mundo” o capitão Kidd, veterano de guerra, anda de cidade em cidade lendo notícias de jornal em troca de moedas. Em “O céu da meia-noite” um cientista solitário tenta evitar que humanos voltem à Terra em meio ao caos instalado. Um filme fala do passado; o outro, do futuro.

      “Relatos do mundo” é lento. Já “O céu da meia-noite” custa a engrenar. O primeiro mantém a linha narrativa do primeiro ao último minuto. O segundo exige uma entrevista com o diretor para entender o final, que não contarei. São filmes sobre dificuldades de relacionamento e sobre a importância de ajudar o próximo. Falam de amizades improváveis, de dores jamais curadas, de amores inesquecíveis e de incomunicação. Num dos filmes, a menina recebe, numa pousada, um quarto só para ela, mas dorme no chão. Fora criada com indígenas. No outro, a menina tem um quarto só para ela na estação de observação espacial, mas vai dormir no chão no quarto do seu novo protetor.

      Roteiristas são treinados para seguir um mesmo imaginário narrativo? Queremos sempre ouvir as mesmas histórias, mais ou menos na mesma ordem de apresentação? Outro ponto em comum entre os dois filmes: o silêncio dos protagonistas. O herói de faroeste falar pouco é clichê. Faz parte do perfil do personagem. O cientista de “O céu da meia-noite” até é mais falante. Só lhe falta com quem falar. Ele sofre de uma doença terminal. A menina é seu último contato. Num e noutro filme os homens não estão preparados para cuidar de meninas, não as querem, tentam se livrar delas sem conseguir. Adaptam-se enquanto resmungam. Entregam-se finalmente. Quase as perdem em meio às tempestades e percebem o quanto as amam. Dá para fazer um filme só: Relatos da meia-noite. Parte I (passado) e Parte II (futuro).


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