Reviravolta chilena

Reviravolta chilena

Crônica de tragédia construída

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Jared Diamond tem o dom de multiplicar a venda de livros. Tornou-se um dos autores mais vendidos no mundo com “Armas, germes e aço”. Em 2019, voltou a cena dos best-sellers com “Reviravolta – como indivíduos e nações bem-sucedidos se recuperam das crises” (Record). Examina os casos da Finlândia durante a Segunda Guerra Mundial, do Japão da era Meiji, da Alemanha pós-nazismo, do Chile de Pinochet, da Indonésia e da Austrália. A sua interpretação de cada caso está baseada numa lista de 12 fatores. Um deles é a capacidade de cada indivíduo ou nação em crise fazer uma “autoavaliação honesta”.

      Um capítulo interessante é o do Chile. Quando o autor conheceu o Chile, em 1967, ficou sabendo que os chilenos se viam como diferentes, identificados com os Estados Unidos e não com a América Latina. O mantra do orgulho local era: “Nós chilenos sabemos como nos governar”. Seis anos depois, foram capturados por Augusto Pinochet, descrito por Diamond como o responsável por uma ditadura que “superou todos os recordes mundiais de tortura sádica perpetrada pelo governo”. Os Estados Unidos apoiaram o governo de Pinochet. Os chilenos haviam perdido a competência para se governar?” Muitos estavam satisfeitos com os resultados econômicos. A tortura e as execuções eram só um detalhe a ser jogado para baixo do tapete.

      O próprio Jared Diamond não passa no teste da autoavaliação honesta: “Embora a CIA apoiasse constantemente a oposição a Allende e tentasse enfraquecê-lo, mesmo os americanos que expuseram a sua interferência concordam que o golpe foi executado pelos próprios chilenos, e não pela agência”. Livra a cara dos compatriotas. O interessante na narrativa de Diamond é a descrição das escolhas de Pinochet: “Uma possível explicação é que Pinochet reconheceu que nada sabia de economia, retratando-se como (ou sendo) um homem simples, e achou atraentes as consistentes e persuasivas propostas dos Chicago Boys. Ou pode ter identificado os Chicago Boys e suas políticas com os Estados Unidos, que apoiavam, partilhavam de seu ódio pelos comunistas e retomaram os empréstimos ao Chile imediatamente após o golpe”. Qualquer aproximação com a atualidade é só coincidência.

      A Indonésia militar de Suharto teve como economistas a chamada “máfia de Berkeley”. Os filhos do ditador foram acusados de corrupção. O pai disse que eles eram apenas hábeis empresários. Há sempre uma equipe neoliberal com diplomas de alguma universidade americana pronta para ajudar ditadores despreparados ou líderes autoritários “humildes” em economia. O “sucesso” chileno, segundo Diamond, teria esta explicação: “Em uma democracia, teria sido difícil infligir um sofrimento tão disseminado aos pobres e impor políticas contrárias aos ricos oligarcas”. Os ricos chilenos nunca tiveram muito do que se queixar. A ditadura foi generosa com eles.

 

Previsões afundadas

 

      Preocupado com a própria reputação, Jared Diamond não quis tapar o sol com peneira. Antes da crise que abala o Chile atual, escreveu: “ Todavia, o desempenho econômico do Chile está longe de ser um sucesso uniformemente distribuído. A desigualdade econômica permanece alta, a mobilidade socioeconômica é baixa e o Chile continua a ser uma terra de contrastes entre riqueza e pobreza”. Os chilenos querem revisão da Constituição marcada pelo pinochetismo.

      Jared Diamond destaca os pontos sensíveis: “A Constituição de Pinochet incluía uma provisão (ainda efetiva) especificando que 10% da receita obtida com as vendas (isso mesmo, vendas, não somente lucros) nacionais do cobre deve ser destinada, todos os anos, ao orçamento militar”. À plebe, nada. Aos militares, garantes do regime, tudo. Outra mera semelhança com novas experiências governamentais. Pulemos os senadores biônicos e as regras eleitorais bizarras. O povo que sabia se governar e se identificava com os norte-americanos passou 17 anos louvando a honestidade de Pinochet, até que se descobriu que ele tinha 125 contas bancárias no exterior com 30 milhões de dólares. Isso não abalou a veneração dos mais fanáticos.

      Intelectuais costumam ser desmentidos pelos fatos. Jared Diamond concluiu seu recente ensaio sobre o Chile assim: “Como o Chile conseguiu emergir de quase dezessete anos de repressão militar e crueldade governamental inaudita sem um trauma ainda mais profundo? Embora o país ainda se debata com as consequências dos anos Pinochet, foi uma feliz surpresa constatar que os chilenos não estão mais atormentados”. Eles ainda se orgulhariam de ser diferentes dos outros países latino-americanos e de saber se governar. Os últimos acontecimentos no Chile mostram que a “feliz surpresa” era ilusão. Os chilenos estão tão atormentados quanto outros latino-americanos: Argentina, Bolívia, Colômbia, Equador, Venezuela. Neoliberalismo e socialismo bolivariano parecem ter algo em comum: o fracasso.


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