Saber do outro

Saber do outro

Diferente ou inimigo?

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      Os tempos são duros. Não há espaço para erudição. Fui, no entanto, convidado para falar no I Seminário Internacional Brasil Teias Culturais, organizado pela UNEB (Universidade do Estado da Bahia). Tema: heterologia. A palavra assusta. Pode ser resumida brutalmente: o conhecimento do outro. E aí começa o jogo: conhecimento do outro ou sobre o outro? Saber do outro ou saber sobre o outro? Conhecimento ou reconhecimento? Aceitação ou tolerância? Quem tolera, aceita? Quem é o outro? Jean-Paul Sartre entrou para as agendas e calendários com a sentença: “o inferno são os outros”. Dominique Wolton diferencia informação e comunicação. O importante é a comunicação: a relação com esse outro irredutível ao que eu sou.

      A heterologia consagra a diferença. A França e os Estados Unidos exploram modelos opostos. Os franceses sempre privilegiaram em tese a integração: cada um é livre no foro íntimo e deve ser integrado aos valores da República no espaço público. Na França faça como s franceses, salvo naquilo que não ofende os donos da casa. Nos Estados Unidos, o multiculturalismo justapõe, cada vez mais, “tribos” diferentes, sem fundi-las. Cada um no seu espaço. Um mosaico de diferentes que não dialogam. Os conflitos interculturais incendeiam países. Um professor foi decapitado na França por ter mostrado caricaturas de Maomê aos alunos. Ontem, três pessoas foram assassinadas em Nice, inclusive uma brasileira, duas delas degoladas na basílica Notre-Dame. Uma parte do mundo muçulmano está em guerra contra o presidente Emmanuel Macron por causa do seu apoio à liberdade de expressão ocidental. Como conviver com esse diferente que não suporta diferença?

      O Ocidente tem, vez ou outra, crise de consciência: quer respeitar esse outro, esse diferente, sem ter de anular os seus valores. Esse diferente respeita o outro, o ocidental? O que deve prevalecer: a liberdade ocidental de caricaturar quem se quiser ou a interdição imposta pela cultura do outro? Que um europeu não possa fazer caricatura de Maomé em Riad parece assentado. Que não possa fazer em Paris implica que a norma interna já não é feita pelos cidadãos franceses.

A Europa colonizou o mundo e nunca terminará de pagar pelos estragos que fez. Terá agora de dobrar-se, não ao universalismo abstrato que pregou, mas aos ditames de cada cultura com seus fundamentalismos e dogmas?

      A tolerância pressupunha a aceitação do outro com suas diferenças e que esse outro nos aceitasse com nossas singularidades. O que fazer quando um lado grita: “O Ocidente quer nos impor a sua visão de mundo e não nos respeita?” E o outro responde: “Vocês querem anular a nossa cultura de liberdade”. Uma saída seria cada um fazer na sua casa o que lhe convém e não ditar regras para a casa dos outros. Num mundo globalizado, porém, tudo se mistura. Países muçulmanos determinam boicote a produtos franceses. A força do mercado decidirá quem tem razão? Imporá um limite à liberdade de expressão francesa?

      Empresas europeias criam empregos no mundo muçulmano. Qual será o peso disso na solução do problema? Não se deve culpar o todo pela parte. Os fundamentalistas são minoria. Qualquer morte, contudo, atinge o todo. Pelo jeito, heterologia continuará a ser um palavrão.


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