Santo Domingo, tão perto e tão longe

Santo Domingo, tão perto e tão longe

Primeira cidade europeia do Novo Mundo

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      Vivemos tão perto e tão longe do nosso princípio. Quantos viajam a Punta Cana, na República Dominicana, e não visitam a capital Santo Domingo! Punta Cana é o Caribe na plenitude da sua beleza, mas quase não tem cultura local. Os trabalhadores dos grandes hotéis moram em alojamentos. A cidade de Higuey fica a uma hora de distância. Punta Cana tem algo de sobrenatural, de Disney mais que perfeita, de pérola na solidão da irrealidade das suas águas azul-turquesa e os seus iates. Tudo está tão arrumado que provoca um arrepio de medo. Vida artificial.

      Vivemos indiferentes a esse país, a República Dominicana, que tem a primeira cidade europeia da América, Santo Domingo, a primeira catedral, a primeira universidade, prédios do século XVI, a primeira mulher a defender os nativos, os Tainos, Maria de Toledo, esposa de Diogo, filho de Cristóvão Colombo, uma história inacreditável e louca com certas figuras. O ditador mais famoso da região ousou rebatizar Santo Domingo como Cidade Trujillo. Estamos tão distantes disso que nem ligamos para as notícias desta parte da nossa América: as eleições municipais do último domingo foram canceladas no meio da votação: o sistema eletrônico não funcionou. Os votos iam todos para a situação.

      Santo Domingo, quando nuvens escondem o sol, exibe a tristeza das cidades tropicais. Debruçada à beira do mar, orgulhosa do seu centro colonial restaurado, patrimônio da humanidade, a capital conjuga modernidade e atraso com a falta de cerimônia que nos caracteriza. Sob a placa de não jogue lixo, cresce uma montanha de dejetos. É a vida. À sombra generosa de árvores nativas, onde um dia morou a família Colombo, Santo Domingo tem tanto passado quanto nenhuma certeza do futuro. Quem tem? O viajante olha o mar pela janela e se conforma com a natureza. Como é possível que não se tenha feito deste céu um paraíso?

      Quem pode atirar a primeira pedra? Os europeus saquearam o Novo Mundo, que batizaram de América, com a promessa de civilização. Hoje, culpam-nos pelo nosso fracasso. Deixaram representantes. Em 1937, Trujillo mandou trucidar os haitianos que viviam ilegalmente na República Dominicana. Hoje, com milhares de haitianos paupérrimos buscando trabalho no lado mais aquinhoado da ilha, há quem ouse citar novamente o nome de Trujillo. Dizem coisas assim: “Naquele tempo se vivia melhor e não tinha tanta violência”. Só a ditadura matava. Usava todos os métodos possíveis, especialmente os mais perversos e raros.

      Há poesia na estética prosaica de Santo Domingo, uma pulsação frenética associada a cadeiras na calçada e ar interiorano. Passear a pé pela zona colonial da cidade de Bartolomeu Colombo, saindo do espaço mais restrito dos monumentos, é como fazer uma escavação arqueológica, indo de camada em camada do mais do próximo ao mais distante ou vice-versa. Uma caravela de mentirinha balança no mar do crepúsculo como que para lembrar que estamos num museu a céu aberto, entre verdades, mentiras, visões do paraíso, pesadelos, eternos retornos e fakes.

Santo Domingo, cidade de monumento a um assassinato justo, um tiranicídio, a morte de Rafael Trujillo por um grupo de libertadores suicidas.

De 14, só dois sobreviveram.


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