Saudades da palavra estrabulega

Saudades da palavra estrabulega

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Essas palavras

 

      Estávamos na estrada. O destino era Gaurama, verdejante cidade da região de Erechim, onde participei do 1º FLAG, uma bonita festa cultural. Foi lá que eu pensei em criar um novo índice de qualidade de vida, o IPAC: Índice de Pássaros e Árvores de uma Cidade. Nem PIB nem só IDH: IPAC. No caminho, olhando a paisagem, meu deu repentinamente saudade de palavras da minha infância. Engraçado como certas palavras ficam para trás. Eram tão comuns, ditas todos os dias com tanta naturalidade, e já não as ouço:

– Que guri mais estrabulega!

Quantas vezes fui chamado de estrabulega? Incontáveis. Eu achava que era “arteiro” – outra palavra que já não ouço – ou aplicada a quem estragava coisas, especialmente brinquedos. Como eu. Estrabulega foi uma das palavras mais comuns dos meus primeiros 17 anos de vida. Quando foi que parei de ouvi-la? Quando foi que me distanciei desse mundo de palavras tão sonoras e autênticas? Não sei. Fui olhar no dicionário como quem volta à cidade natal depois de anos de ausência. Dicionário online. Cheguei com o coração apertado. Quando a gente volta, a cidade, antes gigantesca, sempre parece menor. A torre da igreja não era tão alta. Tive uma decepção.

Estrabulega: “1. Que ou quem é doido, estouvado; insensato. 2. Que ou quem é dado a confusões e desordens; desordeiro, turbulento”. Eu nunca fui assim. Nem meus irmãos. Nem meus amigos. Éramos todos estrabulegas. Mas não desordeiros e turbulentos. Armávamos nossos rolos, claro. Não éramos santinhos. Mas doidos e estouvados, não. Insensatos, talvez. Enluarados, com certeza. Enluarados e ensolarados. Fiquei triste. A acepção de estrabulega da minha infância era melhor, mais pura, mais ingênua, mais doce, coisa de mãe atarantada com sete filhos cheios de vida, de energia e de brinquedos caseiros para quebrar sem querer por excesso de vitalidade.

Deixei de ser estrabulega ou de ser chamado assim já faz alguns anos. Serei mais estrabulega hoje do que ontem? Em qual acepção do termo? Não sei. Tenho mais dúvidas agora do que quando podia ostentar todas as certezas dos meus calejados 18 anos de idade. Não sou velho o suficiente para duvidar de tudo. Nem jovem o bastante para ter certezas definitivas. Tornei-me um nefelibata: “1: que ou quem vive nas nuvens. 2. (figurado pejorativo) que ou o que não obedece às regras literárias (diz-se de escritor). 3. (figurado, por extensão, pejorativo) que ou quem é muito idealista, vive fugindo da realidade”. Como o idealismo pode ser pejorativo? Vivo com a cabeça nas nuvens. É muito refrescante. E suave.

Não obedeço às regras literárias. Nem as conheço. Escrevo o que sinto. E sinto muito. Sinto tanto que preciso me confessar aos pássaros na Redenção. Às vezes, ouço um trinado como resposta que parece dizer:

– Que guri mais estrabulega!

Duvido da realidade do PIB, do IPCA, do IGPM, da Selic, do CDI, do FMI e de outras letrinhas desse naipe. Quero viver meus últimos anos numa cidade na qual os jornais divulguem todas as semanas o IDH e o IPAC.

Depois, baterei asas.

 

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